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Memória de Santarém - Meu avô Raimundo

Lúcio Flávio Pinto - 22/10/2018

Raimundo Pinto, de roupas claras, em frente a sua casa, como filho Elias Pinto, em Santarém - Créditos: Arquivo: Lúcio Flávio Pinto

A casa do meu avô, Raimundo Francisco Pinto, ficava numa das mais movimentadas esquinas do bairro da Aldeia, em Santarém. Não me lembro das visitas que certamente lhe fiz quando a minha família ainda morava na cidade. Inesquecíveis ficaram as temporadas de férias passadas na grande casa que ele construiu, sobre uma elevação do terreno, que lhe dava certa imponência, como de uma casa senhorial no meio do agreste. Essas visitas se realizaram ao longo de cinco anos, entre 1955, quando nos mudamos para Belém, e 1960, quando ele morreu, com 74 anos de idade.

Sua loja, numa extensão da morada familiar, já estava desativada. Era usada pela molecada, que caçava por ali tesouros escondidos, os restos de mercadorias não vendidas, em silêncio, para não delatar a presença num local de acesso proibido.

Vovô, como todo sertanejo, era um homem forte e ativo. Filho caçula, começou a trabalhar cedo, em pouco tempo montando seu próprio negócio, uma usina de beneficiamento de algodão no interior do Ceará, onde nasceu. Papai contava que, com seis anos, carregava fardo com semente de algodão na cabeça para a estação de trem.

O negócio quebrou e vovô veio com o irmão atrás de um novo lugar no Pará. Depois de idas e vindas por seringais e lavouras, se estabeleceu com seu comércio em Santarém. Não sei quanto tempo a sua loja de miudezas durou. Já vi a loja fechada. Nos fins de tarde, ele colocava cadeiras na alta batente da casa e respondia às saudações dos passantes ao “seu” Raimundo. Os mais próximos se achegavam para uma conversa, mantida com poucas palavras e muitos acentos guturais.

Mesmo quando papai se tornou o mais célebre integrante da família, o dono da casa era o velho Raimundo, que recebia Elias Pinto, o filho político sem perder a postura, como se vê nesta foto, quando papai lhe fez uma visita no meio da sua primeira campanha para a prefeitura municipal, em 1958.

Só hoje tenho consciência da influência nordestina na minha formação naquela casa, que era a reconstituição cearense no meio do percurso do maior rio do mundo, no seu encontro com o Tapajós. As roupas severas e simples de imigrantes assediados pela seca, a comida igualmente seca, preparada num grande fogão de lenha, que esparramava fumaça pela cozinha e defumava a linguiça estendida num varal em cima da boca de fogo, tudo muito rústico, como se ao lado não houvesse a maior floresta úmida do planeta.

Eu era o neto preferido do velho Raimundo. Com o tempo, vi que minhas feições o lembravam mais do que a ramificação portuguesa da minha mãe, com os quais mais me identificava conscientemente na minha infância. Não me lembro de um afago mais íntimo do meu avô, mas ele não arredava o pé da janela da casa enquanto eu empinava meu papagaio na rua. Minha tia Laura, irmã da vó Brígida, recebia ordem de me levar uma merenda ou me proteger do sol inclemente com seu guarda-chuva, ela resolutamente em pé ao meu lado, me acompanhando nas manobras que fazia. E também a me oferecer seu braço de pele lisa e mole, sentada numa cadeira ao lado da minha rede, junto a uma das janelas da sala, para que eu a tocasse até dormir, sob o vapor de água que se desprendia da palha artisticamente armada no alto telhado, sem forro, nos dias de chuva, na n oite escura, sem luz elétrica, me fazendo sonhar com prazer e otimismo, como agora faço, relembrando o querido Raimundo Francisco Pinto da infância cada vez mais distante.




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