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Santarém: de escaramuças políticas e de tumbas

José Carneiro - 10/10/2018

O ex-governador Alacid Nunes, em 1968; Elias Pinto assumiu a prefeitura de Santarém em 1967 -

Há quarenta anos, no exato dia vinte de setembro, a cidade de Santarém presenciou uma escaramuça que, de certa forma, toldou a sua história, embora tenha deixado registrada na memória de várias gerações o símbolo da luta e do destemor da população. É razoável constatar que quatro décadas quase nada representam para a história, embora seja grande o risco do esquecimento, daí a necessidade de se impedir as novas gerações de permanecerem muito distantes dos acontecimentos marcantes vividos pela sociedade, mormente nos casos como este, em que tumbas, de heróis e de anônimos, foram abertas para receber corpos qu e, de uma forma ou de outra, resistiram ao arbítrio e ao autoritarismo da época. Esse episódio santareno, aparentemente distante no tempo, não deixa de ser, ainda, uma referência da luta que se travou num período obscuro da república brasileira.

No mês de janeiro de 1967 o sr. Elias Pinto assumiu a prefeitura de Santarém, depois de ter sido deputado estadual na legislatura de 1955 a 1959.  Sua retumbante vitória eleitoral chamou a atenção por duas razões: primeiro por ter sido uma vitória de oposição, no momento em que a chamada revolução de 64 tentava se legitimar pelas urnas; em segundo lugar porque tinha um passado político de forte atuação na região e seu nome, ou sua candidatura, teve a densidade suficiente para garantir-lhe a vitória no segundo município mais importante do Estado.

Sua combativa presença na Assembleia Legislativa do Estado lhe dera o respaldo necessário para ensaiar o difícil voo que tentou, com sucesso, para o executivo municipal de Santarém, obtendo repercussão para além das fronteiras paraenses, em razão da importância estratégica do município. Essa repercussão revelou a figura polêmica do novo prefeito, que encarnava a nova oposição consentida pelo governo militar e travestida no MDB, sigla que identificava o Movimento Democrático Brasileiro, fundado em 1965, após a extinção de todos os partidos existentes até então, em mais um ato discricionário do governo de 1964.

E foi justamente como prefeito eleito que ele acabou protagonizando uma série de episódios, que desaguaram num sangrento incidente de 1968, pelas ruas de Santarém, exatamente no dia 20 de setembro daquele longínquo ano. Sua eleição havia decorrido numa disputa duríssima, o que o obrigaria a buscar mais apoio popular na direção do seu futuro. Provavelmente isso tenha feito com que se descurasse das relações com a Câmara Municipal, onde tinha adversários fortes e, mais além, descurasse da própria administração, no seu frenesi para atingir apressadamente mais e mais respaldo popular.

Essa meta o teria afastado do dia a dia da Prefeitura que, numa cidade do porte de Santarém, exigia cuidados administrativos cada vez mais redobrados. Muito provavelmente terá sido esse o flanco que deixou a descoberto e do qual se aproveitaram seus adversários para alijá-lo do poder. O governador do Estado era o coronel Alacid da Silva Nunes, eleito em outubro de 1965 com grande maioria de votos, graças ao apoio recebido do também coronel Jarbas Passarinho, o governador ungido pela revolução em 1964. E no episódio de Santarém o coronel Alacid Nunes teria papel preponderante, ao autorizar a ida de tropas da PM para controlar a ordem e assegurar a decisão judicial tomada sob pressão do executivo estadual.

Tudo começou quando a Câmara, descobrindo falhas na contabilidade do Prefeito do MDB, instruiu um processo para enquadrá-lo em responsabilidades e, ao final, cassá-lo, destituindo-o do mandato. Esse verbo “cassar” era pouco conhecido no Brasil, até que irrompeu o golpe militar de 1964 e com ele a palavra chave removendo da vida pública quem não estivesse à altura dela, segundo a ótica dos revolucionários.

Os indigitados eram punidos com a cassação, que significava perda do mandato, das funções (de juiz, por exemplo), do cargo (se funcionário público) e o banimento de qualquer atividade pública pelo prazo de dez anos.  

O prefeito, cujo mandato estava suspenso, conseguiu neutralizar o golpe dos vereadores por intermédio de uma ação na Justiça que lhe assegurou, em liminar do Juiz de Direito da Comarca de Óbidos, o futuro desembargador e presidente do TJE, Manoel Christo Alves, a reassunção ao cargo. Mas isso não seria uma providência fácil por causa do acirramento dos ânimos na cidade e, sobretudo, por causa das articulações do governador com vistas a mantê-lo fora do comando da prefeitura santarena.

Houve um fato novo e estrepitoso, que foi a decisão tomada pelo deputado federal Haroldo Veloso de apoiar o prefeito. O deputado Haroldo Veloso era brigadeiro da reserva e um herói da Aeronáutica, tendo alcançado larga fama quando liderou uma rebelião na FAB na tentativa de impedir a posse do presidente JK, em janeiro de 1956, no que ficou conhecido como a “rebelião de Jacareacanga”.

Veloso acabou derrotado nesse intento mas foi anistiado pelo presidente, ganhou fama e, no futuro, lugar de certo destaque na política paraense. Havia sido eleito deputado federal pelo partido do governo, a Arena, com grande parte de sua votação oriunda do município de Santarém mas, sentindo-se cada vez mais marginalizado pela revolução, decidiu apoiar o prefeito, o que acabou provocando o conflito. Na ocasião ficou famosa a frase de Veloso: “como revolucionário estou cansado de esperar”.

O prefeito e o deputado, com a liminar em mãos, marcaram a data para reassumir a Prefeitura, aproveitando a ocasião para fazer o necessário estardalhaço contra seus adversários e galvanizar ainda mais o apoio popular que necessitavam. Em contraponto a isso, o governador Alacid Nunes, no comando total do processo, apoiou a medida da Câmara junto ao Tribunal de Justiça na intenção de suspender os efeitos da liminar e, em consequência, negar provimento às pretensões dos oposicionistas e seus simpatizantes na cidade.

O presidente do Tribunal, desembargador Agnano Monteiro Lopes, decidiu a favor do governador (claramente por questões conjunturais, pois naqueles momentos ninguém ia contra a revolução, só um ou outro, como Veloso) expediu a ordem suspendendo a liminar e, na mesma manhã, o governador autorizou o envio de tropas estaduais para Santarém, que viajaram em aviões cedidos pela Paraense Transportes Aéreos (o Estado era avalista dos negócios da PTA, que não podia negar o “pedido” do governador mas isso acabou sendo um dos componentes que redundaram no fechamento da empresa, dois ou três anos depois. Já escrevi sobre isso nestas “Memórias”).

A ordem do Tribunal e a presença dos soldados impediram não só a consumação do ato mas redundaram numa tragédia de incríveis proporções, pois os manifestantes a favor do prefeito entraram em confronto com a Polícia Militar, resultando em mortes no local e tendo o deputado Haroldo Veloso sido ferido à baioneta e esse ferimento agravou-se e causou-lhe a morte, quase um ano depois, no Hospital da Aeronáutica do Rio de Janeiro.

Por causa da morte do deputado Haroldo Veloso a Aeronáutica não perdoou o governador Alacid Nunes, que saiu chamuscado politicamente do episódio mas, numa aparente contradição, vitorioso no ato. O Prefeito foi cassado e, com a punição imposta pela revolução, teve que se afastar da política santarena, do que resultou, também, o fim da autonomia política de Santarém, que foi considerado município em área de segurança nacional e, portanto, com as eleições municipais extintas.

Os prefeitos passaram a ser nomeados pelo Presidente da República, arbítrio que durou até a nova redemocratização do País. E porque sei de tudo isso? Independente da pesquisa a que sou obrigado a fazer para escrever estas “Memórias”, eu era repórter da “Folha do Norte” na ocasião e fiquei encarregado de cobrir todos os acontecimentos desse episódio a partir de Belém. Fui quase testemunha ocular de uma história. É o que relembro agora.




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