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O feminicídio e o assassino: como conter esses crimes

Lúcio Flávio Pinto - 10/10/2018

O poder público criou leis e se instrumentalizou para defender as mulheres, vítimas crescentes de feminicídio e outras formas de agressão. A transição do domínio machista para uma igualdade social entre os gêneros é lenta, tumultuada e sujeita a retrocessos. Era de se prever: a ditadura masculina é milenar. Muitos homens encaram como ofensa, ultraje e mesmo hostilidade a liberação dos costumes, posturas e até mesmo do vestuário das mulheres.

Os mais intransigentes, intolerantes, primários e violentos reagem – de imediato ou depois de algum tempo – com brutalidade tal que as agressões assumem formas inusitadas, surpreendentes e chocantes. O anteparo da família se mostra insuficiente ou mesmo inútil diante dessa escalada de crimes contra as mulheres.

Tenho acompanhado as ocorrências com indignação. Delegacias especializadas, medidas protetivas, penas mais pesadas – isso e tudo mais parecem estar perdendo a sua eficácia, induzindo – ainda que inconscientemente - um cenário de impotência institucional que agrava a sensação de impunidade dos criminosos, estimulando-os a cometer os atos mais selvagens que se têm registrado. Já não basta buscá-los e puni-los. O Estado precisa ir além.

Em primeiro lugar, criando um programa sério e eficiente de proteção e atendimento às demandas familiares. O núcleo da resistência às agressões estava na família. A família é agora o reduto por excelência desses crimes. A gravidade da situação exige prioridade máxima ao seu acompanhamento psicológico como missão estatal de relevância máxima.

Mas, e os homens? Nem todos são meras máquinas destrutivas. Cresce a frequência de feminicidas que se suicidam. É exemplo caso recente há duas semana, na Grande São Paulo, de um sargento da PM, de 26 anos, que matou a esposa, da qual se afastara depois de dois anos de casamento, foi à casa do amante dela, o matou, e em seguida regressou à residência do casal e se enforcou. Há, nessa sequência, a possibilidade de uma interrogação: se fosse levado a atendimento terapêutico em tempo oportuno, o homicida/suicida poderia ter sido desviado do caminho em direção à morte brutal?

A criminalidade em geral e o homicídio em particular nunca foram questões sociais tão graves no Brasil como agora. Não só pelos índices quantitativos como pela incrível multiplicidade de formas de objetividades e subjetividades causais que vem assumindo.

Parece que os crimes chegaram ao limite da tipificação pelo seu grau de violência e de inovação que assumem. Parece que as variedades possíveis se exauriram e a barbárie chegou ao fundo do poço. Logo, porém, aparece um procedimento novo, uma situação inédita, uma variação surpreendente.

A amplitude de tipos é tal que o homicídio, sem nunca deixar de ser uma questão social, adquire uma autonomia desafiadora. As explicações tradicionais e os meios de combate convencionais deixam de ser satisfatórios e eficientes.

Daí a insegurança concreta – e também a sensação de insegurança – que se expande na sociedade. Os cidadãos buscam e não encontram um novo porto seguro para nele ancorar a sua vida, exposta a elementos imponderáveis e imprevisíveis, em um mar revolto. A insegurança coletiva dá causa a episódios e fenômenos, incluindo na política o fascismo, que se infiltra nas estruturas de poder.

A imprensa tem um papel relevante diante do agudo problema. Em particular, no Pará. Os veículos de comunicação no Estado dão tempo e espaço enormes às matérias ditas de polícia, mas, na esmagadora maioria dos casos, para delas tirar apenas proveito comercial, vendendo mais jornais ou maior audiência para obter mais anúncios.

O sensacionalismo é praticado pelo uso de fórmulas prontas e clichês de linguagem e de apuração dos fatos que em quase nada contribuem para o melhor conhecimento da criminalidade e da sua forma mais extrema, a matança de pessoas. O crime é negócio no seu cometimento pelos criminosos e na sua utilização pela mídia.

Dou um exemplo a partir da edição de dias atrás de O Liberal (o Diário do Pará nem pode servir de parâmetro; seu noticiário costuma ser um registro pobre e viciado da crônica policial). A notícia é sobre um feminicídio cometido em Icoaraci, distrito de Belém.

Aparentemente, um fato que, mesmo sendo brutal e revoltante, já se tornou corriqueiro, quase trivial. Um ex-companheiro (não se sabe se ex-marido, se participante de uma relação estável ou qualquer condição legal), de 42 anos, matou com cinco facadas no pescoço, sua ex-companheira, de 45 anos. Atacou-a quando ela estava dentro da casa de parentes, onde se abrigara dias antes.

Pelo noticiário, fica-se sem saber ao certo se Ivone Maria Siqueira saíra de Ourém, seu domicílio permanente, para escapar do assédio de Oscar Oliveira, que insistia em restabelecer a relação (ou o casamento). Ou se queria visitar o filho mais velho, de 19 anos (a filha ficou em Ourém). Ou as duas coisas.

Os dois estavam juntos havia mais de 20 anos. O jornal reproduz versão de parentes e amigos de que viviam bem, apesar de separados. No entanto, Oscar ameaçava se suicidar. Ele teria tentado mesmo se matar depois de dar as cinco facadas violentas e matar no ato a mulher, usando a faca.

Mas não cometeu o ato, não se sabe porque desistiu de moto próprio ou impedido pelo irmão (não se sabe se mais velho ou mais novo), que, aparentemente, estava no local e manteve Oscar detido até a chegada da Polícia Militar, que fez o flagrante e recolheu a arma do crime, encontrada ao lado do cadáver.

O irmão, Ronaldo Oliveira, acompanhou os policiais e depôs na delegacia seccional de Icoaraci. Depois de concluir suas declarações, pediu para falar com Oscar, que fora recolhido a uma cela trajando apenas uma sunga. Quando os policiais foram à cela, já o encontraram morto. Ele se enforcara usando o tecido da sunga.

Como o jornal nada acrescenta sobre esse suicídio, no mínimo insólito, não se tem certeza de que ele se matou e como conseguiu cometer o suicídio com tão pouco recurso e de forma tão silenciosa, introduzindo um noto item aos tratados criminais.

E sem se poder penetrar no drama humano e no contexto social desse acontecimento chocante. Muito menos estabelecer um padrão de referência ou termo de comparação para que não se repita essa história de feminicídio seguido do suicídio do criminoso preso em flagrante e que se suicidou na cela onde aguardava a sua vez de depor à polícia.

O governo não deveria dar atenção a esses homens. Eles não estão na mesma posição das mulheres, já que são os assassinos, mas podem ser vítimas também desta fase de superação da dominação do macho poderoso. Não estão preparados para a igualdade. Mas não são maus por sua condição biológica. Logo, é preciso tratar sua condição psicológica, Talvez assim se consiga reduzir progressivamente a chocante progressão do feminicídio.




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