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A farsa da borracha se repete com o minério, um século depois

05/10/2013

O Pará viveu, exatamente um século atrás, uma fase da sua história que guarda semelhanças com a atual, embora de significado bem menos complexo e grave. O surto de crescimento econômico – continuado e incrementado – que a exploração monopolista da borracha sustentou durante meio século entrou em colapso com o ingresso, no mercado internacional, do primeiro e fatal concorrente. A Ásia passou a fornecer borracha muito mais barata e em maior volume do que a Amazônia. Em 1912 a quebra atingiu seu ponto definitivo de inflexão: para baixo.

No dia 12 de fevereiro de 1913, ao assumir o governo, na sua mensagem de abertura do congresso estadual (a assembleia legislativa de então), Enéas Martins ainda tinha esperança: “saímos de uma longa noite penosa”. O alvorecer se infiltrava no horizonte, mas ainda era “conturbado”, admitia. A economia estadual, que brilhara nos anos anteriores e parecia indestrutível na sua pujança, sofrera pelos “abusos ao crédito, os desmandos nos impostos, os gastos e desperdícios” praticados pelos seus governantes e a sua elite. Nada fora feito para dar melhor aplicação à renda da borracha e prevenir a sua quebra.

O novo governador acreditava que havia uma saída para a crise, através de “novas fontes de renda sem que com elas vexemos o contribuinte”. Achava que não convinha “diminuir ainda a taxa cobrada sobre a borracha bem preparada, pedindo à de fabrico menos cuidado uma pequena compensação no aumento da taxa respectiva”. Assim, estimulando o maior beneficiamento da matéria prima e onerando a produção in natura, estimularia a formação de renda maior para circular internamente.

Enéas sabia que para isso iria precisar de “elementos preciosos de trabalho e informação”, através de maior contato com a economia internacional e qualificação técnica do governo. Mas já era tarde para sua iniciativa. Não houve como controlar a derrocada: o Pará entrava (com a Amazônia) naquele período (1920-40) definido pelos historiadores como sendo a sua idade média. Enéas Martins deixou o governo em 1917, transferindo um legado negativo para o seu sucessor, apesar de todo o seu empenho para melhorar a situação do Estado.

O Pará vive momento parecido. No lugar da borracha, o sustentáculo da sua economia agora são os minérios, principalmente o minério de ferro da Serra de Carajás, o melhor do mundo. Sua exploração completará 30 anos em 2015. O primeiro carregamento saiu de Carajás em fevereiro de 1985. A primeira jazida, a de Serra Norte, está em vias de esgotamento. A mais importante, a de Serra Sul, entrará em atividade comercial em 2017. Quatro décadas depois nada mais restará dela.

Se em 30 anos o Pará não passou de um grande vendedor de minério, não conseguindo avançar no beneficiamento, conseguirá outro resultado nos 40 anos seguintes? No curso de um século, não poderá regressar a uma situação de crise ainda maior do que ao fim do ciclo da borracha? E quem diagnosticará a situação e tentará encontrar uma alternativa?

Certamente nenhum dos seus líderes em atividade. Todos tiveram sua oportunidade e falharam. Não se mostraram à altura do desafio: evitar que o Pará se torne uma colônia internacional de minérios e de outras commodities, com baixo valor agregado. incluindo a energia. O Pará foi o Estado que mais cresceu, sobretudo no comércio exterior, desde que os primeiros dos “grandes projetos” (Jari e Trombetas) entraram em operação, em 1979.

Embora o crescimento seja um fato inquestionável quanto ao valor do PIB ou aou o volume de vendas ao exterior, essa grandeza não se traduziu (ou teve tradução inversa) socialmente e mesmo economicamente. Daí ser fundamentada a expressão do crescimento como rabo de cavalo: quanto maior é, mais para baixo fica.

Por desinformação, despreparo ou má fé, as lideranças do Estado insistem num único ponto como corretivo para essa distorção: maior receita de impostos. Esse tom monocórdio se explica pelo fato de ser dinheiro que vai para as mãos daqueles que controlam o poder político e econômico. Mas ainda que residualmente essa receita tenha aplicação social, ela jamais conseguirá reverter a marcha batida do Pará no rumo do atraso relativo causado por esse crescimento para baixo.

Enéas Martins e outras lideranças mais esclarecidas que surgiram durante os 50 anos da economia da borracha foram um pouco além desse tributarismo estreito dos nossos dias. Sem onerar o cidadão com uma carga mais pesada de impostos, eles perceberam que o mecanismo tributário devia tentar induzir o maior beneficiamento da matéria prima e onerar o extrativismo primário.

Esse caminho era (e continua a ser) tão óbvio quanto a chave do enigma: colocar o guizo no pescoço do gato ameaçador. Mas quem poderia desempenhar essa tarefa? No caso concreto, não bastava ter a consciência do problema e a vontade de resolvê-lo: era necessário saber como fazer o certo e desfazer os nós e arranjos do errado. Na sua mensagem de 1913, Enéas demonstrou saber o que fazer: ter mais intimidade com o mercado internacional, para o qual se destinava a produção de borracha, e trazer dela os conhecimentos técnicos para dar embasamento ao processo de industrialização do látex.

O problema é que não havia mais tempo para isso. A produção asiática já estava em condições de dar o golpe fatal na economia gomífera da Amazônia com escala de produtividade e preço inalcançáveis. Quem iria investir num negócio sem condições de competitividade e perspectivas de lucro? O Brasil ainda tentou oferecer preços compensatórios (e subsidiados) aos produtores amazônicos, mas esse esforço chegou ao fim quando aos industriais paulistas se tornou melhor negócio a importação de borracha. Foi o segundo e definitivo golpe às pretensões de subsistência da economia regional desse produto.

Uma oportunidade ainda melhor se ofereceu aos paraenses quando os “grandes projetos” foram saindo das pranchetas para a realidade. A marca desses empreendimentos foi o sigilo. Nasceram e se viabilizaram em gabinetes e, depois, no circuito fechado que a decisão, tomada de fora para dentro e de cima para baixo, proporcionou.

Havia uma aliança (ou um conchavo) entre o governo federal e as grandes empresas interessadas nos cursos naturais da Amazônia. Aos Estados competia cumprir as ordens e desempenhar um papel secundário, complementar. Aloysio Chaves, governador entre 1975 e 1979, tentou inserir o Estado nesse esquema de forma mais criativa. Mas foi reprimido pelo poder central e se submeteu ao arrocho para poder sobreviver politicamente.

Sua maior proposta foi pela formação de um planejamento inovativo na administração estadual, cada vez mais reduzida a alocar verbas e decisões do governo federal. A linha teórica foi traçada, mas lhe faltaram os elementos de realidade, os instrumentos de ação, sem os quais não há planejamento que valha a pena. Essas ferramentas continuam indisponíveis até hoje. O pior é que falta até mesmo planejamento. Nada mais é antecipado, antevisto, preparado.

Quando a hidrelétrica de Tucuruí e os polos de mineração e metalurgia se tornaram viáveis, o Estado teria que se empenhar na busca pelo uso intensivo de energia no seu próprio território. No caso da bauxita, o ciclo chegaria até a transformação do minério em metal básico. Mas nunca foi além do lingote de alumínio. A tarefa aí seria implantar um polo de elaboração a partir do metal básico, o que nunca foi conseguido, em função dos interesses do Japão, sócio dominante (apesar de com menor participação acionária) na associação. Para a quantidade de energia absorvida pela Albrás, foi uma perda brutal.

Talvez o mais dramático tenha acontecido com o minério de ferro. Carajás entrou em atividade quando a siderurgia mundial passava por mudanças revolucionárias. Os mastodontes siderúrgicos americanos entraram em colapso por não se amoldarem às novas tecnologias, que tornaram possível a redução direta do aço em miniusinas. O Pará, que tinha um insumo abundante, a energia, podia ter navegado nessa onda pioneira, mas ficou miseravelmente para trás. Não criou qualquer efeito para frente da mera mineração.

Homem esclarecido, o governador Almir Gabriel tentou forçar a criação de um centro siderúrgico próximo à mina e o beneficiamento do cobre, eletrointensivo que só fica abaixo do alumínio. Mas foi ludibriado primariamente pela Vale e ainda se calou voluntariamente diante da privatização da estatal, que antes contestava, para receber o presente da usina de beneficiamento, que não veio.

A incipiente e engatinhante estrutura técnica do Estado para acompanhar a implantação dos “grandes projetos” e procurar um modelo alternativo aos seus efeitos perversos foi se desfazendo até se tornar quase nula. Deixou de haver a interlocução com a grande empresa, que passou a assumir a função do poder público, oferecendo-lhe consultoria e recursos para carimbar os estudos e planos elaborados ou contratados pela própria empresa. A raposa acabou tomando conta do galinheiro, onde as galinhas às vezes fazem muito barulho, mas nada mais do que isso. É só cacarejo.

Líderes de maior envergadura, como os que surgiram na era da borracha, tentaram formular um projeto próprio para o Estado. Esmagados por uma realidade hostil ou renunciando aos propósitos iniciais, acabaram por se empenhar em realizar seus anseios pessoais e deixar que o Pará se tornasse um retrato na parede das mansões em que passaram a viver, alguns na sede nacional do poder, outros nas capitais do mundo, como fez Augusto Montenegro, em Paris.

O Pará parece condenado a repetir a história. Agora, como já se sabe, como farsa do drama (ou tragédia) original. Quem viver até 2014 verá.

 

 




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