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A prova de fogo de Lula

Erika Berenguer - 19/05/2023

Créditos: Crédito: Adilson Dantas/O Globo

A Amazônia é maior que o Brasil. É assim que o mundo nos vê. Durante os quatro anos de governo Bolsonaro, a Amazônia invadiu os noticiários de todo o mundo, escancarando a destruição da maior floresta tropical do planeta. Nem a nossa tragédia sanitária, culminando na morte de 700 mil pessoas por conta da COVID-19, gerou tanta notícia. Isso não é por acaso – a nossa grande importância econômica e política, não se compara ao nosso papel fundamental no combate às mudanças climáticas. Não é à toa que no dia seguinte à eleição de Lula, o ministro do meio ambiente norueguês anunciou a reativação do Fundo Amazônia e que, já em 2023, as duas maiores potências mundiais, os EUA e a China, anunciaram a sua entrada no mesmo fundo.  

 

O governo Lula, ciente da importância da Amazônia nas agendas políticas nacional e internacional, lançou o novo Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia com pouco mais de 100 dias de governo. O PPCDAM, como é conhecido, é o maior plano de ação de combate às mudanças climáticas do planeta: ele propõe zerar o desmatamento na região até 2030. As evidências científicas mostram que as versões anteriores do PPCDAM foram fundamentais na redução do desmatamento em 80% entre 2004 e 2012. Por isso, as expectativas para o novo plano são grandes. 

 

Mas não estamos mais em 2004. O clima mudou. As florestas mudaram. Os cinco anos mais quentes do estado do Pará aconteceram desde então. O mesmo ocorreu no Amazonas. E no Mato Grosso. E em Roraima. A floresta amazônica está mais quente. Bem mais quente. As florestas também estão mais secas, chovendo até 30% a menos em certas partes da Amazônia durante o período de estiagem. Essa combinação de um clima mais quente e seco deixa as florestas mais vulneráveis a pegar fogo, o que historicamente era impensável. Sim, fogo numa das florestas mais úmidas do mundo! Esse fogo não é natural, como muitas vezes ocorre em savanas, como o Cerrado brasileiro. Não. Ele precisa ser iniciado por seres humanos. Então, quando o fogo é utilizado para queimar toda a floresta derrubada no processo de desmatamento ou então para fazer o manejo de pastagens, ele pode acabar escapando para as florestas do entorno. Em anos de seca extrema, como foi 2015 por conta do El Niño, o fogo consegue entrar quilômetros e mais quilômetros adentro da floresta, matando bilhões de árvores. Infelizmente isso não é uma figura de linguagem, mas dados científicos. 

 

Agora, o que não mudou, foi o PPCDAM. O Plano não se adaptou nem às mudanças climáticas e nem às secas cada vez mais extremas que já estão a ocorrer na região – o que antes era apenas uma seca forte causada por El Niño, agora ocorre em cima de uma floresta já 1.0° C mais quente.  O desastre causado pelo combo mudanças climáticas e secas extremas foi letal em 2015, quando mega incêndios queimaram milhões de hectares por toda a Amazônia, incluindo unidades de conservação e terras indígenas. Até mesmo regiões de várzea sem qualquer registro de fogo anterior, como o Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, passaram semanas e mais semanas queimando. O resultado dessa catástrofe também é superlativo: as emissões anuais de CO2 devido à degradação na Amazônia são maiores do que as emissões causadas por desmatamento.

 

Aqui cabe um parênteses porque a degradação florestal é amplamente incompreendida. A degradação é diferente do desmatamento – enquanto no desmatamento toda a floresta é derrubada, na degradação não. Os incêndios florestais matam metade das árvores da floresta, deixando-a como um queijo suiço, cheia de buracos. Mas a floresta continua existindo, claro que armazenando menos biodiversidade e carbono, mas ainda é uma floresta e tem maior valor ecológico e climático do que um pasto ou uma monocultura. Ao todo, cerca de um terço das florestas amazônicas já foram degradadas (não só pelo fogo, mas também pela extração ilegal de madeira, pelos chamados efeitos de borda e por secas extremas), o que revela o quanto a degradação é comum. A maioria das florestas degradadas demora séculos para se recuperar e, se forem degradadas novamente, podem nunca voltar a ser o que um dia foram. Entretanto, a degradação não é o primeiro passo para o desmatamento - um estudo mostrou que, em um período de 30 anos, apenas 14% das florestas amazônicas degradadas foram posteriormente desmatadas. Ou seja, medidas para frear o desmatamento não servem para frear a degradação.

 

E aí voltamos ao PPCDAM. Chegou a hora dele se adaptar à nova realidade climática e ao novo conhecimento científico advindo de uma série de estudos sobre degradação dos últimos 20 anos. Chegou a hora do Plano ganhar um segundo ‘D’, se tornando o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento e à Degradação na Amazônia. Esse ano é o ideal para esse rebranding – segundo estimativas do Instituto Nacional de Meteorologia, há 80% de chances de, no segundo semestre, ter início um forte El Niño. Se 2023 for semelhante a 2015, em breve estaremos vendo imagens de hectares e mais hectares de florestas queimando, uma imagem que certamente não é nem a que o Brasil e nem os demais países do mundo esperam de Lula. Esses incêndios florestais podem ser ainda pior do que vistos anteriormente, porque além do El Niño há outros dois fatores que podem tornar esse em um ano infernal para a Amazônia: tanto o IBAMA quanto o ICMBio encontram-se seriamente enfraquecidos, e há muita floresta derrubada no chão que não foi possível queimar no último ano devido às fortes chuvas da La Niña. É um verdadeiro combo da morte.

 

Porém há como prevenir esse quadro se ações forem tomadas imediatamente. Em primeiro lugar, é vital a inclusão do segundo ‘D’ no PPCDAM, para que a degradação tenha o protagonismo, e os recursos alocados, que merece. Em segundo lugar, tendo em vista a tragédia anunciada, há de se criar um plano emergencial de prevenção a incêndios. Um plano traçado agora, quatro meses antes do pico da seca na maior parte da Amazônia, pode evitar um remake piorado de 2015. Tal plano precisaria criar brigadas extras, as alocando para os municípios com maior risco de incêndios, enviar equipamentos de combate ao fogo para toda a Amazônia e alinhar suas medidas emergenciais junto aos governos municipais e estaduais. Essas ações serão sem dúvida custosas, porém trarão o benefício de mostrar, para todo o mundo, o atual governo combatendo de frente os novos desafios trazidos pelas mudanças climáticas e assim contornando uma hecatombe florestal. Se as previsões de El Niño estiverem certas, 2023 será o ano da prova de fogo de Lula.

 

Este artigo, publicado originalmente pelo Valor, foi resultado do policy brief ‘A Degradação de Florestas Amazônicas Precisa Ser Combatida’, endossado por 24 pesquisadores e gestores. 

 

*Erika Berenguer, pesquisadora da Rede Amazônia Sustentável e das universidades de Oxford e Lancaster.




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