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Amazônia: é agora ou não tem volta

Mírian Leitão/O Globo - 29/08/2022

Carlos Nobre, pesquisador - Créditos: believe.hearth

O cientista Carlos Nobre parece um viajante no tempo, mas seus pés ficam bem fincados na Amazônia, esteja onde estiver. Naquele momento, o carro atravessava pela Via Dutra a distância entre São Paulo e São José dos Campos, no começo de uma noite de agosto. Mas, na nossa conversa, estávamos na floresta. Do passado e do futuro.

 

— Antes de falar dos próximos 20 anos da Amazônia, vamos fazer um breve olhar para trás e pensar nos últimos 200 anos. Poderia ter sido tudo diferente. José Bonifácio era contra o desmatamento, a favor de incorporar o conhecimento dos povos indígenas, preservar as línguas indígenas e queria que o Brasil fosse o primeiro país a abolir a escravatura. Defendia um modelo de agricultura diferente daquele expansionista que estava destruindo a Mata Atlântica — diz Carlos Nobre.

 

Um breve lamento sobre o que o Brasil poderia ter sido e que não foi e, em seguida, pulou, ágil, para os próximos anos, pauta que eu havia proposto para a nossa conversa. Para um climatologista, 20 anos não é nada, porque os tempos dilatados, as projeções de décadas, chegam facilmente a meados ou ao fim do século.

 

Nesse tempo curtíssimo, de duas décadas, o Brasil escolherá seu futuro. E o do mundo. Sim, é grave assim. Temos errado tanto, por tão longos anos, que chegamos aqui, na porta dessa escolha fatal entre vida e morte. Os caminhos se estreitaram. Estamos na encruzilhada.

 

— Vinte anos é um tempo marcante. Estamos tão próximos do ponto de não retorno que, se a gente não conseguir zerar o desmatamento, a degradação e o fogo a jato, o mais rápido possível, não conseguiremos deter o processo. Temos de dar uma oportunidade para todo o Sul da Amazônia. O que eu falo agora não é previsão ou projeção, como eu fiz em vários artigos científicos. São observações. A estação seca está cinco semanas mais longa se comparada à de 1979. Aumentou uma semana por década. Então a estação seca está agora com quatro ou cinco meses. Se aumentar mais duas semanas, ela chega a seis meses. Aí não tem mais volta. Já é clima de savana tropical. Mas uma savana pobre, e não rica como o nosso cerrado. Vários estudos mostram que entre 30 e 50 anos a floresta pode desaparecer, porque as árvores da Amazônia não evoluíram milhões e milhões de anos para a estação seca longa. As árvores vão morrendo. E isso começa no Sul da Amazônia.

 

Quilômetros de capim

 

Estive lá no Sul da Amazônia. Viajei por horas a fio na ausência das árvores. A falta dá concretude física ao que os cientistas falam e os ambientalistas alertam. Ela pode desaparecer, deixar de ser. É aflitivo e asfixiante não ver a floresta onde a floresta deveria estar. No seu solo, em quilômetros e quilômetros que viajei, nada há a não ser capim.

 

Edro Rodrigues dos Reis é um homem despachado, engraçado, e nos recebe na varanda voltada para as plantações e áreas de mata da sua Fazenda Santa Luzia de 150 hectares, na zona rural de São Félix do Xingu, no Sul do Pará. Fomos, a equipe e eu, conhecer um dos vários exemplos da agricultura familiar voltada para a produção que concilia tudo no chamado sistema agroflorestal. A conversa foi rica e esclarecedora, com ele, sua filha Ana Kelly e sua nora Maria Helena. Depois de passeio pela produção, de comer cacau no pé, e de muita prosa na varanda, perguntei como ele via o futuro da Amazônia.

 

— O futuro da Amazônia vai por água abaixo.

— Por água abaixo?

— Vai ué, porque Bolsonaro liberou o garimpo pra todo lado, o que não pode, liberou arma, diz que é pra todo mundo, mas ele liberou arma pros bandido que andam tudo armado, se um colono matar um bandido vai pra cadeia, se um bandido rouba ou mata colono, nem vai preso. Que segurança nós tá tendo nesse mundo?

 

Na beira da rodovia indo de Marabá a São Felix do Xingu vi outdoors exaltando a liberação de armas e agradecendo a Bolsonaro, e placas oferecendo os serviços de tirar a terra do “Prodes”, ou seja, liberar área embargada. O crime e a impunidade se espalham na Amazônia com velocidade nos anos Bolsonaro. A economia vive de estímulos e expectativa. Todos os sinais nos últimos anos foram de que vale a pena investir na destruição da floresta.

 

Há uma relação direta entre o que fala o cientista Carlos Nobre sobre os sinais de mudança climática e o que todas as pessoas da agricultura familiar com quem eu conversei relatam do seu cotidiano. O próprio Edro e sua família, e o casal Joaquim e Helenira. Eles viram a mudança do tempo, sobre a qual o cientista alerta.

 

— A gente lembra quando mudou para cá, era mata até a beira do rio. Hoje, você olha, não vê mais isso, e tá muito calor — me contou Helenira, na sua varanda espaçosa que nascia na cozinha e era voltada para as áreas de plantio e mata.

 

— Quando eu vim para cá, do São Felix aqui você não via dois alqueires de abertura. Hoje você não vê dois alqueires de mata, para você ficar na sombra — me disse Edro.

 

— A região aqui mudou muito, de quando eu mudei pra cá. Eu morava em Xinguara e, quando a gente mudou pra cá, aqui chovia demais. Aqui era semanas e semanas chovendo sem parar e hoje a gente vê ai, né, teve essa mudança no clima. Tá totalmente diferente. Você anda nessas estradas aí, você vê só poeira — disse Maria Helena, uma jovem produtora e integrante de um movimento de agricultoras do sistema agroflorestal.

 

— Vi com meus próprios olhos os fazendeiros desmatando mil alqueires, dois mil alqueires aí, de uma vez. Às vezes, o Ibama vai lá e prende. Depois solta. E ele vai e faz o mesmo processo. Desmata. Conheço gente que comprou quatro mil alqueires, já desmatou dois mil. Foi preso e quando saiu desmatou o resto. E a gente está sentindo o impacto na natureza — disse Joaquim.Perto é um lugar que não existe na Amazônia. Precisei de dois dias para visitar as duas famílias, mas ouvi o mesmo relato, como se a conversa não tivesse tido interrupção. Contei para Edro que tinha viajado muito naqueles dias pelas estradas da Unidade de Conservação Triunfo do Xingu e perguntei:

— Cadê a floresta seu Edro?

— Cabô. E muitos não têm, nem beira de córrego ficou, o garimpo atacou tudinho, acabou tudo, tudo. E eles vinham aqui dois, três dias, me atentar.

— Atentar com o quê?

— Para garimpar, nos vizinhos do pai tudo tem garimpo — explicou Ana Kelly, a filha do Edro.

— E eles vêm insistindo. Eu vou pagar pra você, e eu, não, não, não — disse Edro.

 

O que faz o povo da Amazônia ainda dizer “não” ao lucro fácil, ao dinheiro que bate na porta atentando, ao poder político e econômico, às ameaças do crime? Talvez seja o mesmo sentimento inexprimível que leva os indígenas a proteger a floresta como se fosse parte da própria existência.

 

Fui a Brasília, em abril, e pedi para conversar com líderes Munduruku. Eles estavam no Acampamento Terra Livre, mas preferiram ir até onde eu estava. Avisei na portaria da Rede Globo que chegariam três fontes minhas. Eles chegaram com toda a sua indumentária de pinturas e paramentos. Vieram o cacique-geral Arnaldo Kaba, a coordenadora da Associação Pariri, Alessandra Korap, e o antropólogo Ademir Kaba. Durante duas horas eles me deram uma aula de paixão pela natureza, defesa das florestas, dos rios, dos peixes, dos animais em total simbiose com sua própria vida.

 

— Não é só o Munduruku que está sofrendo, o Rio Tapajós está morrendo, nossos peixes estão doentes. Nossa doença é o mercúrio. Como vão ser as nossas crianças, nossos netos que vão viver daqui para diante? A área demarcada está sendo destruída e nós, em cima delas, doentes — disse o cacique geral Munduruku.

 

Um MIT na Amazônia

 

Uma encruzilhada tem o caminho alternativo. E é para ele que Carlos Nobre gosta mais de olhar com seus projetos concretos que ligam floresta, economia, ciência. Ele tem muitas ideias e as coloca em prática, com sua mente treinada no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e no MIT. Por isso, um dos seus sonhos é fazer um MIT na Amazônia. O estudo ainda preliminar foi lançado na USP em julho.

 

— É o meu sonho. Demos o nome de AMIT, Instituto de Tecnologia da Amazônia. Mas em italiano podemos falar como se fosse amigo, “amicci” da Amazônia. Estamos buscando apoio, mas a ideia é transformá-lo em realidade nos próximos anos. Não seria universidade, mas cursos de graduação, mestrado e doutorado específicos voltados para a bioeconomia — diz Nobre.

 

Há outros institutos, organizações e movimentos trabalhando por um futuro sustentável da Amazônia. Todos precisam de reforços porque o crime avançou muito.

 

— Há duas trajetórias. O desmatamento, a degradação e o fogo continuarem a aumentar. Aí a gente chegaria ao fim dos 20 anos tendo já passado do ponto de não retorno. Outro cenário oposto é o da redução rápida do desmatamento e da degradação. Como 95% de todo o desmatamento é ilegal, é preciso haver uma ação muito efetiva dos governos para acabar com o crime. E crime ambiental, hoje, o satélite vê a árvore cortada. Os satélites avançaram muito, não são aqueles de 20 anos atrás — diz Carlos Nobre.

 

Vinte anos atrás, acabava o governo Fernando Henrique numa escalada de aumento do desmatamento. Durante seu primeiro mandato, ele enfrentara o recorde histórico de destruição, elevando a reserva legal e aprovando a lei de crimes ambientais. No começo do governo Lula, os criminosos voltaram a testar os limites. Em 2004, o Brasil teve o segundo pior número de desmatamento da história, 27 mil km2. Dali em diante, medidas fortes de combate ao crime reduziram em mais de 80% a taxa de desmatamento, até 2012. Depois a taxa começou a subir nos governos Dilma e Temer e, agora, nos anos Bolsonaro, a alta já foi de 73%. As previsões de 2022 não são boas. Mas, reverter é possível.

 

— É tão fácil, o satélite vê, você vai e destrói tudo, começa a dar prejuízo tão grande para o crime que os financiadores fogem. Foi o que aconteceu quando a gente derrubou o desmatamento — diz Nobre.

 

Agora será preciso também fazer o trabalho no sentido contrário, de refazer a mata. Uma parte já foi feita pela floresta. O pesquisador Paulo Amaral, do Imazon, conseguiu comprovar que, ao todo, 7,2 milhões de hectares já estão em processo de regeneração com mais de seis anos.

 

— Pegamos a imagem de satélite e vimos áreas que tinham sido desmatadas e voltaram a ter floresta. Fomos a campo e constatamos. Para nossa surpresa, em grande parte das áreas abandonadas, a floresta está se refazendo — disse Amaral.

 

Carlos Nobre conta que na COP 27, no Egito, o Painel Científico da Amazônia vai lançar um Policy Brief, um estudo propondo o “arco da restauração florestal”.

 

— Para combater o arco do desmatamento, nós vamos propor um projeto global que precisa de muito apoio internacional para restaurar mais de um milhão de km² na Amazônia, principalmente no sul da Amazônia — diz Nobre.

 

A ideia é deixar áreas regenerando sozinhas e replantar nas regiões muito desmatadas e degradadas. Nobre já tem o custo desse replantio por hectares e o cálculo do benefício disso para o planeta.

 

— Para cumprir as metas do Acordo de Paris, será preciso retirar gás carbônico da atmosfera. Uma floresta secundária na Amazônia cresce por 30, 35 anos em ritmo acelerado, removendo por ano 11 a 18 toneladas de gás carbônico por hectare. Esse projeto do arco da restauração pode retirar um bilhão de toneladas de gás carbônico da atmosfera. Estão estimando que, até 2030, o preço da tonelada, se houver um mercado de carbono forte, pode chegar a US$ 30. Além de combater a mudança climática, essa restauração da floresta vai levar renda para os pequenos agricultores envolvidos nos sistemas agroflorestais.

 

‘Agora tem o veneno’

 

Sistema agroflorestal foi o que eu vi nas fazendas da agricultura familiar que visitei. Josefa Machado Neves é presidente da Associação de Mulheres Produtoras de Polpas de Frutas de São Félix do Xingu. Ela mora na Linha 51, do distrito de Tancredo Neves, na zona rural do município. Quando me sentei em sua acolhedora varanda virada para a mata e para as plantações e perguntei qual era o principal problema da região, ela enumerou.

— Primeiro, os problemas mais graves eram o fogo e o garimpo. Mas agora tem o veneno.

 

Produtores grandes espalham agrotóxicos por avião, e o vento leva para a plantação da Josefa e de suas amigas. Elas estão replantando árvores frutíferas amazônicas, dentre elas sobressai o cacau. São mulheres que batem no peito dizendo que são “agricultoras”, e querem viver em paz com a floresta. Se a lei barrar os crimes ambientais e o mercado de carbono chegar até elas, a história do futuro será diferente.Debaixo do pés de cacau, é um fresquinho só. Lá Maria Helena e Ana Kelly, nora e filha do Edro, me explicam como transformaram um lugar abandonado numa área altamente produtiva com o sistema agroflorestal. Enquanto falamos, fomos comendo cacau. Eu e Maisa, de seis anos, filha da Maria Helena. A mãe explica que tudo ali é sustentável e reaproveitado. Nesse momento, Maisa interfere, com o seu cacau já todo comido.

— E eu ainda posso pegar a casca e usar como copo para beber água — diz, mostrando que entendeu o conceito de “sustentável”.

 

A água brotava limpa entre as pedras debaixo do cacaueiro. E naquele entardecer, comendo cacau no pé, vendo uma menina bebendo água com seu novo “copo”, foi possível por um minuto sonhar com o futuro da Amazônia.




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