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Com cravo na alma

Lúcio Flávio Pinto/Vilma Reis - 25/04/2021

Para não deixar o cravo da liberdade de Portugal se despetalar pela desatenção da imprensa local em uma das mais portuguesas cidades do Brasil, publico o texto enviado por Vilma Reis, jornalista paraense que mora há alguns anos em Coimbra, com suja família.

 

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Quando as primeiras bancas de jornais abrirem hoje, em Belém, e este texto começar a ser lido, eu já terei comprado, em Coimbra, dois cravos vermelhos. Eu e quase todo mundo… Dificilmente encontrarei na rua alguém sem máscara na cara e sem esta flor nas mãos. Há 47 anos que todo 25 de Abril em Portugal é assim: nunca são demais os festejos para a data mais importante da história portuguesa moderna. É o chamado Dia da Liberdade, da Revolução dos Cravos, da Democracia, dos Capitães de Abril. 

 

Na véspera desta efeméride, no ano passado, meu filho trouxe da escola um papel com o recado “Prezada mãe do António Lúcio, lembramos que neste 25 de Abril não podemos sair à rua, porém, como Abril é, antes de mais, um projeto coletivo, cantaremos à janela pontualmente às três da tarde, o hino da Revolução”. Eu li e olhei pro meu filho, que explicava: “É aquela música que começa assim: "Ó Grândola, Vila Morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade”. 

 

Não é preciso viver em Portugal há séculos para ser contagiado pela data. Basta ouvir com atenção a voz dos mais vividos - e eles sempre ressaltam que lembrar a revolução é também pensar o futuro. É o que eu faço. A cada conversa ganha espessura minha ideia do que realmente foi conquistado em 1974, quando um grupo de homens com muito valor se levantou, seguido depois por muitos outros homens e mulheres. Esse levante militar derrubou, em mais ou menos 18 horas, os 48 anos da mais antiga ditadura fascista no mundo do século XX. 

 

Antes da revolução, quase todas as famílias portuguesas tinham alguém combatendo nas guerras das colônias africanas. O serviço militar durava quatro anos. Opiniões contra o regime e contra a guerra eram punidos. Partidos e movimentos políticos não podiam existir. As prisões estavam cheias de líderes oposicionistas. Sindicatos eram severamente controlados. A greve era proibida. As demissões eram fáceis de executar; E a cultura, vigiada.

 

Quando cantei pela primeira vez o hino de Zeca Afonso na minha janela, muitos amigos meus ainda estavam vivos. Um ano depois meu whatsappvirou um obituário e a frase que eu mais escrevo é: “Nossa fuga é pra frente, vamos ficar juntos, vamos nos abraçar em breve”. Hoje sei que o vírus que parou o mundo pode ser derrotado; entretanto, faz mossa e deixa marcas fundas.

 

Mas há sempre quem lhe faça frente. Neste domingo eu e meu filho vamos levar nossos cravos vermelhos para a Praça da Canção, concentração marcada para três da tarde. Vai-se cantar Grândola Vila Morena outra vez, porque é isso que devemos fazer com a história: refletir sobre ela e, a partir dessa reflexão, nossa noção do que é o mundo amplia um pouquinho. E de grão em grão se vai compreendendo a existência desse bichinho chamado ser humano.




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