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Um pioneiro bolsonarista (1)

Lúcio Flávio Pinto - 18/07/2020

Paulo Cesar Quartiero deixa seu rastro por Roraima e pela ilha do Marajó, representando uma ameaça. - Créditos: HuffPost Brasil

Finalmente, uma excelente reportagem sobre um dos exemplares do bandeirante dos tempos modernos na Amazônia, predador da natureza, inimigo dos nativos e presumido dono da região. No site Intercept Brasil, Naira Hofmeister conta a história de Paulo Cesar Quartiero, que deixa seu rastro por Roraima e pela ilha do Marajó, representando uma ameaça.
Naira Hofmeister é jornalista e vive em Porto Alegre. Trabalha como freelancer desde 2006 e escreve para veículos como El País, Agência Pública, Piauí, Yahoo e, no Uruguai, comenta sobre o Brasil para a Rádio Océano FM. É cofundadora do Filtro Fact-Checking no Rio Grande do Sul. Por causa da extensão do texto, vou publicá-lo em partes.

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O Pioneiro – Este fazendeiro pratica

a agenda de Bolsonaro na Amazônia há 40 anos

Os olhos do patrão inspecionavam o trabalho de meia dúzia de operários debaixo do sol da manhã em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, norte do Pará. Novembro já se encaminhava para o final, e Paulo Cesar Justo Quartiero sabia que precisava andar rápido: quando as chuvas chegassem, em dezembro, qualquer obra se inviabilizaria durante meses. Por isso, ele vigiava de perto o time que erguia duas colunas de proporções incomuns para uma porteira de fazenda.

“Não é um pórtico”, me explicou o produtor de arroz, em 2018. “É um patíbulo para enforcar todos os ambientalistas que venham encher o saco. Agora, com Bolsonaro presidente, vai ser assim”, disparou, embalado pela então recente vitória do capitão reformado à presidência da República.

Nove meses depois, enquanto a Amazônia ardia, comovendo o mundo, Quartiero saudava o governo: “Começou muito mal mas agora tá se firmando”. Ele estava numa feira agrícola no Rio Grande do Sul e, ao atender ao pedido da fotógrafa incumbida de fazer seu retrato para esta reportagem, apoiou o pé em um trator e explicou-se: “então vou fazer pose de matador de índio”.

Ambientalistas, indígenas e quilombolas são adversários históricos do arrozeiro e pecuarista, cujas terras no Pará são quase do tamanho da área urbana de Natal, no Rio Grande do Norte. Em 2017, quando assumiu a cadeira de governador de Roraima por uma semana, Quartiero atraiu atenções ao exonerar o então titular da Secretaria do Índio, favorável às demarcações de terras no estado. “Se fosse em situação de guerra, ele teria de ser fuzilado, na realidade. Mas, como temos democracia, ele foi demitido”, declarou.

Há quase 50 anos, o gaúcho Paulo Cesar Quartiero vem antecipando o Brasil de Bolsonaro. É pioneiro da ideologia que declarou o fim do politicamente correto e prega a submissão de ambientalistas, indígenas e quilombolas à lógica da agropecuária, uma cartilha que o presidente está colocando em prática na Amazônia brasileira.

Embora a votação de Bolsonaro em 2018 tenha surpreendido a elite intelectual nas capitais, a trajetória de Quartiero já indicava adesão, nos grotões, a um projeto político no qual plantar arroz na floresta é mais importante do que preservar árvores. Concorrendo a cargos públicos desde 2004, turbinou as candidaturas com atitudes violentas contra quem se apresentasse como inimigo na batalha pela Raposa Serra do Sol, fossem autoridades ou populações tradicionais, muitas vezes virando réu por essas ações. A estratégia surtiu efeito, e Quartiero perdeu apenas uma eleição entre as quatro disputadas: foi prefeito em uma cidade no norte de Roraima, vice-governador e também deputado federal – o segundo mais votado no estado em 2010. Foi no Congresso Nacional que conheceu Bolsonaro e passou a ser seu defensor. “Na verdade, acho que ele copiou as minhas ideias”, resume.

Como Bolsonaro, Quartiero considera exagerada a legislação ambiental que lhe impôs, entre multas (em 2008 e 2009) e embargos, uma dívida que ultrapassa R$ 56 milhões por desmatamento e atividade produtiva sem licença. Alinhado ao presidente, que apelidou o sistema de “indústria de multas”, ele decidiu não pagar.

Pelo que conta, nem será preciso apelar ao núcleo de conciliação e anulação de multas do Ibama, criado pelo presidente da República. Ele diz ter estado duas vezes com o ministro Ricardo Salles para pedir a anulação das infrações “ideológicas” que recebeu ao ser expulso da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde plantou arroz por décadas: “Ele é muito preparado. Tentei explicar (a situação) a ele, que disse: nem precisa, foi injusto o que fizeram com vocês. Pediu que a gente leve uma maneira de justificar (a anulação das multas), que daria seguimento”.

Não há registro das reuniões na agenda de Salles, e o ministério não respondeu os pedidos de esclarecimento da reportagem, mas não seria um caso isolado. Em setembro de 2019, um grupo de garimpeiros se reuniu com o ministro para pedir a punição de uma milícia na Raposa Serra do Sol.

As afinidades com o novo governo são muitas, mas talvez a mais relevante seja aquela que insinua a revisão da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, com o controverso propósito de integração dos povos originários à sociedade. Quartiero foi porta-voz dos insurgentes contra a criação da reserva em uma área contínua de 1,7 milhão hectares nos anos 2000. Mobilizou uma milícia para combater os indígenas que reivindicavam a posse definitiva da área, outorgada pelo ex-presidente Lula em 2005 e confirmada longos quatro anos depois pelo Supremo Tribunal Federal. A seu lado, marcharam também indígenas, que ele teria organizado sob a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, que se aliou a Bolsonaro e em 2020 voltou ao noticiário depois que seus membros foram presos em uma operação da Polícia Federal contra o garimpo ilegal dentro da reserva.

Quartiero chegou a ser detido na época e ainda hoje responde a vários processos por crimes como sequestro e cárcere privado, formação de quadrilha e constrangimento ilegal. “Foi a fase feliz da minha vida, eu só sinto não ter levado ao extremo”, me disse sobre as recordações, em alguma medida lamentando que o então Comandante Militar da Amazônia – o general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional do presidente da República – não tenha cumprido uma promessa de enviar tropas para se somar à resistência dos produtores rurais. “Se ele tivesse feito aquilo, ele possivelmente seria preso. Mas como (Hugo) Chávez, sairia da prisão presidente. Em vez de termos Bolsonaro, há tempos teríamos Heleno presidente”.

Na versão de Quartiero, ele teria ouvido a promessa em encontro na sede do Comando Militar da Amazônia, chefiado por Heleno entre 2007 e 2009. Embalado pelo uísque, o general teria questionado se os fazendeiros de Roraima iriam resistir à demarcação da Raposa Serra do Sol. “Ele perguntou três vezes para nós isso, se a gente ia lutar. [Eu pensava] Mas lutar como, piscando? Somos meia dúzia e ainda sem recurso. Pois ele três vezes perguntou e três vezes respondeu: lutem que eu boto uma força de pacificação lá”.

“Nós mudaríamos tudo, ia ser o maior movimento de tropas desde 1964. Todas aquelas invasões de índios, do MST, seriam contidas ali. Ali com pouco recurso se ganhava a guerra, e terminava com todo o movimento”, acredita.

Heleno nega. Por meio de nota, o atual ministro disse que a reunião nunca aconteceu. No auge do debate sobre a Raposa Serra do Sol, no entanto, o general criou um embaraço ao governo do então presidente Lula quando qualificou sua política indigenista de “caótica” e “lamentável”. Coincidindo com essa visão, o Exército brasileiro se recusou a participar das ações de desocupação da Raposa após a decisão do STF – o trabalho acabou sendo feito pela Polícia Federal.

Hoje, Quartiero planta arroz sem licença no santuário ecológico na Ilha do Marajó, norte do Pará, para onde foi após ser desalojado de Roraima. A atual fazenda do rizicultor é apontada pelo Ministério Público como produto de área grilada – no ano passado, a justiça determinou o cancelamento do título das terras, mas o processo ainda corre na segunda instância. Foco de conflitos com quilombolas e pescadores tradicionais, sua lavoura é tão grande que está estrangulando a cidade de Cachoeira do Arari, que não tem mais para onde crescer.

Ao se dirigir a mim quando cheguei à sua porta, querendo ouvi-lo sobre as acusações, ele atalhou: “Já sei que tu vai dizer que eu sou grileiro, assassino, desmatador, poluidor… A gente já tem tanto adjetivo, que um a mais, um a menos, tudo bem”, deu de ombros antes de convidar para entrar e, depois de uma entrevista de duas horas, também almoçar, no galpão da peonada. O cardápio: arroz, feijão, costela bovina, salada e Pepsi. “Depois que a Coca-Cola colocou o Pabllo Vittar nas latinhas, eu proibi aqui”, me contou.




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