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Uma praga chamada Bolsonaro

Lúcio Flávio Pinto - 07/06/2020

Em 1974 eu ia de Belém para Manaus como enviado especial de O Estado de S. Paulo. Na escala em Santarém, um amigo embarcou no avião e me informou sobre uma epidemia de meningite que começara no projeto Jari, do milionário Daniel Ludwig, iniciado seis anos antes, numa área enorme entre o Pará e o Amapá. Chegando a Manaus, fretei um teco-teco e fiz o caminho inverso, de volta ao Jari.

 

Pude testemunhar o clima de pânico dos moradores de Monte Dourado querendo fugir. O navio Rio Jari, da Navegação Sion, teve que desatracar do porto de Munguba para não ser invadido. A matéria ocupou página inteira do jornal, mas seus leitores foram impedidos de lê-la. A censura suprimiu a reportagem, que saíra caro para a empresa. A despesa foi considerada bem aplicada. O assunto era de grande interesse, além de ter sido exclusivo, um "furo", que ficou na posta restante da ditadura.

 

Quando o surto de meningite atingiu São Paulo, meses depois, na maior epidemia urbana da doença em todos os tempos, provavelmente levada por uma pessoa contaminada no Jari, passei a coordenar a cobertura, com base na minha relação anterior com o tema. A versão oficial para a proliferação da doença era o frio, que permitia uma sobrevida da bactéria no ar, no contato próximo. Mas descobrimos que a causa mesmo era a miséria de São Paulo, maior do que a sua riqueza.

 

A censura cortava sem dó as matérias. Seu principal alvo era a tabela de casos e de mortes que o jornal mantinha diariamente. A princípio, com base nos relatos dos médicos e enfermeiros do hospital Emílio Ribas, a única unidade de saúde de isolamento. Depois que o pessoal do hospital foi proibido de dar informações, a fonte passou para os cartórios de registro de óbitos. A ditadura também vetou o acesso Os repórteres reuniram então os atestados que possuíam e puderam demonstrar que a história do frio era mentirosa. Afinal, por que só os pobres morriam? Por que não havia casos nos Jardins ou no Morumbi? Por que a alta incidência nas invasões, nos loteamentos ilegais, nas Paraisópolis, Heliópolis e Brasilândias de hoje?

 

Todos os dias Brasília recebia a cópia das matérias censuradas, que chegaram a ocupar de 3 a 4 páginas da edição dia´ria do jornal, a esmagadora maioria delas vetadas pelo censor, que atuava na própria redação do Estadão. Foi questão de honra para os Mesquita, donos do jornal, sustentar o noticiário, da melhor qualidade, mesmo perdendo dinheiro e intrigando o leitor. O vazio criado pelo censor era preenchido com os versos de Os Lusíadas, de Camões. Tanto vácuo a preencher absorveu a repetição do grande poema épico.

 

No auge dessa batalha, que significava o empenho do jornal pelo esclarecimento de milhões de paulistanos, assustados com a epidemia mortal, o então ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, num contato confidencial, anunciou que o governo iria importar vacina ainda experimental da França, do laboratório Merieux, e vacinar o Brasil inteiro, numa das maiores operações de imunização da história, para evitar o mal maior. A| meningite, do tipo C, não tinha uma vacina de efeito comprovado. O Brasil foi a gigantesca cobaia. Felizmente, deu certo.

 

Sob o peso dos meus 70 anos, me levantei da frente da televisão e vim a este computador contar um resumo desta história para com ela registrar minha revolta, indignação, vergonha e irrresignação com a vilania do governo Bolsonaro e sua sórdida manipulação dos dados da pandemia do novo coronavírus no Brasil, hoje o epicentro mundial dessa perigosíssima ameaça à vida humana.

 

A ditadura militar, no seu período mais violento, que tentou impedir que a verdade fosse transmitida ao povo brasileira sobre uma doença que matava todos os dias, mas não na forma e na extensão da covid-19, foi menos danosa do que esse desqualificado governo, que debocha do sofrimento de milhões de pessoas e nãos se vexa de se superar a cada dia nesse espetáculo de infâmia de um presidente insensato, cínico, debochado.

 

Um presidente tão desqualificado que se tornou boneco de manobra do seu ídolo. Donald Trump não pensou duas vezes ao declarar - mentindo, é claro - que por agir com mais rigor e competência do que o seu amigo Bolsonaro (segundo Trump, embarcado na furada canoa sueca) poupou a vida de um milhão de americanos, que, certamente agradecidos, têm a obrigação de agradecer ao salvador votando nele para um novo mandato, enquanto o Brasil amarga a sua via crucis.

 

Quosque tandem abutere patientia nostra, Bolsonaro? Fala por nós, Cícero. Reage, Brasil.




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