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Uma história da liberdade
O Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, contribuiu para a deposição do presidente João Goulart com dois editoriais nos dias 30 e 31 de março de 1964: Basta! e Fora!. Fundado em 1901, o Correio era o jornal mais influente do país, a principal fonte de informação política da classe média. Até o dia 13 de março, dia do famoso comício da Central do Brasil, apoiava as reformas de base do governo.
Depois se convenceu que Jango queria o estado de sítio para intervir na Guanabara, afastar Carlos Lacerda do governo estadual e acertar as contas do getulismo com ele. Os herdeiros de Getúlio Vargas atribuíam ao "corvo" boa parte da conta do suicídio do então presidente da república, 10 anos antes.
O Correio era conservador e burguês, mas era um grande jornal liberal, o melhor durante boa parte da sua existência. Apoiou Jango enquanto ele parecia dispostos a reformar o país, da mesma maneira como pediu o seu afastamento: às claras, diretamente, em editorial.
A equipe de editorialistas era brilhante, a maioria de esquerda. Mas quem deu o sinal da mudança editorial foi um escritor até então considerado pequeno burguês, autor de obras de ficção de temas existenciais e de crônicas de costumes, publicadas no que viria a ser conhecido como um segundo caderno, dedicado à cultura e ao entretenimento.
Carlos Heitor Cony começara a publicar livros em 1958, aos 32 anos. Até 1964, foram sete, um por ano, seis romances e um livro de crônicas, Era um alienado da política. No dia 1º de abril, da janela do seu apartamento, em um prédio no posto 6 de Copacabana (vizinho de Carlos Drummond de Andrade), ele viu uma movimentação na rua e desceu para ver. Relatou a experiência numa crônica no dia seguinte. Um militar fardado e armado empilhava paralelepípedos no chão, ao lado de um tanque. Cony quis saber do que se tratava. -Tomamos Copacabana - anunciou o combatente.
Eu ri muito ao ler a crônica, no dia seguinte. Como eu, milhares de leitores do Correio. O jornal começou a denunciar as violências do novo regime, do qual se afastaria até se tornar uma das piores dores de cabeças do marechal Arthur da Costa e Silva, o ministro da Guerra (esse ministério ainda existia; hoje, é da Defesa). O "seu" Arthur queria ser o novo presidente - e foi, contra a vontade de Castello Branco. Não podia aceitar as ironias e aleivosias a que o cronista, irônico, sarcástico, ferino e cirúrgico, se permitia.
O ministro processou o jornalista. Cony teve que ir ao gabinete do iracundo marechal, que não abriu mão dessa prerrogativa legal. Juiz, escrivão e tudo mais tiveram que levar a estrutura do judiciário até o ministério da Guerra para a inquirição do maledicente homem da imprensa. Sabendo que a barra seria pesada, e para não sacrificar a empresa, Cony pediu demissão através de uma das mais soberbas crônicas políticas que já li.
Ela não está no livro O ato e o fato, que - como símbolo da resistência civil - tirou várias edições naquele ano de idas e vindas entre o fim da democracia de 1946 e a afirmação da ditadura de 1964 (na cronologia dos números trocados que sempre ameaça a democracia brasileira). Está no Posto seis, de 1965, o melhor livro de crônicas de Cony.
Em solidariedade ao amigo e colega, Antônio Callado, o diretor de redação, ao receber o pedido de demissão de Cony. também se demitiu. Outros jornalistas foram presos. Os que permaneceram resolveram transformar o Correio no bastião da democracia. Exageraram na dose. O jornal definhou até morrer, em 1974. Pensavam que esse novo golpe militar seguiria a trajetória dos anteriores, devolvendo o poder aos políticos depois da razzia. Enganaram-se. Os militares assumiram tudo e instalaram uma ditadura pior do que a do Estado Novo (1937-45), inimiga da liberdade, da crítica, da pluralidade e da diversidade.
Cony se tornou ghost-writer de Adolpho Bloch na revista Manchete, gostou da boa vida, fez a cama, deitou-se na cama e ainda recebeu uma bolsa anistia polpuda, ignorando que o sofrimento pelo qual passou fazia parte da opção que assumiu e que foi compensado depois por uma boa vida. Esqueceu dos repórteres que dormiram no seu apartamento para informar a direção do Correio de qualquer tentativa de execução das ameaças que ele recebia: de que seria fuzilado, que suas filhas seriam estupradas e seu apartamento invadido.
Cony continuou a ser um grande escritor e uma excelente pessoa. Mas sua vida tomou o rumo que sua vaidade determinou, o mesmo fator da decisão de Sérgio Moro de renunciar à sua função de juiz, um dos mais importantes da história judicial do Brasil, para se meter em péssima companhia, apenas para chegar à mais alta corte da justiça do país.
Mas eles fizeram história por atitudes corretas e corajosas no momento adequado. Fizeram história por defender a liberdade, o direito à livre opinião, a imprensa como fator de equilíbrio entre o poder e a sociedade, entre os que mandam, querendo mandar cada vez mais, e os que obedecem, mas são esmagados se não reagem às ameaças feitas pelos que, então como hoje, têm um objetivo: voltar a acabar com a democracia.
Alguns podem achar que a atual ofensiva contra a imprensa e os jornalistas nem é relevante. Podem minimizar os ataques a William Bonner. Mas se não se reage quando uma flor é arrancada, logo todo jardim estará ameaçado. E a tenta e frágil planta da democracia brasileira morrerá de novo.