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Uma história da liberdade

Lúcio Flávio Pinto - 28/05/2020

O Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, contribuiu para a deposição do presidente João Goulart com dois editoriais nos dias 30 e 31 de março de 1964: Basta! e Fora!. Fundado em 1901, o Correio era o jornal mais influente do país, a principal fonte de informação política da classe média. Até o dia 13 de março, dia do famoso comício da Central do Brasil, apoiava as reformas de base do governo.

 

Depois se convenceu que Jango queria o estado de sítio para intervir na Guanabara, afastar Carlos Lacerda do governo estadual e acertar as contas do getulismo com ele. Os herdeiros de Getúlio Vargas atribuíam ao "corvo" boa parte da conta do suicídio do então presidente da república, 10 anos antes.

 

Correio era conservador e burguês, mas era um grande jornal liberal, o melhor durante boa parte da sua existência. Apoiou Jango enquanto ele parecia dispostos a reformar o país, da mesma maneira como pediu o seu afastamento: às claras, diretamente, em editorial.

 

A equipe de editorialistas era brilhante, a maioria de esquerda. Mas quem deu o sinal da mudança editorial foi um escritor até então considerado pequeno burguês, autor de obras de ficção de temas existenciais e de crônicas de costumes, publicadas no que viria a ser conhecido como um segundo caderno, dedicado à cultura e ao entretenimento.

 

Carlos Heitor Cony começara a publicar livros em 1958, aos 32 anos. Até 1964, foram sete, um por ano, seis romances e um livro de crônicas, Era um alienado da política. No dia 1º de abril, da janela do seu apartamento, em um prédio no posto 6 de Copacabana (vizinho de Carlos Drummond de Andrade), ele viu uma movimentação na rua e desceu para ver. Relatou a experiência numa crônica no dia seguinte. Um militar fardado e armado empilhava paralelepípedos no chão, ao lado de um tanque. Cony quis saber do que se tratava. -Tomamos Copacabana - anunciou o combatente.

 

Eu ri muito ao ler a crônica, no dia seguinte. Como eu, milhares de leitores do Correio. O jornal começou a denunciar as violências do novo regime, do qual se afastaria até se tornar uma das piores dores de cabeças do marechal Arthur da Costa e Silva, o ministro da Guerra (esse ministério ainda existia; hoje, é da Defesa). O "seu" Arthur queria ser o novo presidente - e foi, contra a vontade de Castello Branco. Não podia aceitar as ironias e aleivosias a que o cronista, irônico, sarcástico, ferino e cirúrgico, se permitia.

 

O ministro processou o jornalista. Cony teve que ir ao gabinete do iracundo marechal, que não abriu mão dessa prerrogativa legal. Juiz, escrivão e tudo mais tiveram que levar a estrutura do judiciário até o ministério da Guerra para a inquirição do maledicente homem da imprensa. Sabendo que a barra seria pesada, e para não sacrificar a empresa, Cony pediu demissão através de uma das mais soberbas crônicas políticas que já li.

 

Ela não está no livro O ato e o fato, que - como símbolo da resistência civil - tirou várias edições naquele ano de idas e vindas entre o fim da democracia de 1946 e a afirmação da ditadura de 1964 (na cronologia dos números trocados que sempre ameaça a democracia brasileira). Está no Posto seis, de 1965, o melhor livro de crônicas de Cony.

 

Em solidariedade ao amigo e colega, Antônio Callado, o diretor de redação, ao receber o pedido de demissão de Cony. também se demitiu. Outros jornalistas foram presos. Os que permaneceram resolveram transformar o Correio no bastião da democracia. Exageraram na dose. O jornal definhou até morrer, em 1974. Pensavam que esse novo golpe militar seguiria a trajetória dos anteriores, devolvendo o poder aos políticos depois da razzia. Enganaram-se. Os militares assumiram tudo e instalaram uma ditadura pior do que a do Estado Novo (1937-45), inimiga da liberdade, da crítica, da pluralidade e da diversidade.

 

Cony se tornou ghost-writer de Adolpho Bloch na revista Manchete, gostou da boa vida, fez a cama, deitou-se na cama e ainda recebeu uma bolsa anistia polpuda, ignorando que o sofrimento pelo qual passou fazia parte da opção que assumiu e que foi compensado depois por uma boa vida. Esqueceu dos repórteres que dormiram no seu apartamento para informar a direção do Correio de qualquer tentativa de execução das ameaças que ele recebia: de que seria fuzilado, que suas filhas seriam estupradas e seu apartamento invadido.

 

Cony continuou a ser um grande escritor e uma excelente pessoa. Mas sua vida tomou o rumo que sua vaidade determinou, o mesmo fator da decisão de Sérgio Moro de renunciar à sua função de juiz, um dos mais importantes da história judicial do Brasil, para se meter em péssima companhia, apenas para chegar à mais alta corte da justiça do país.

 

Mas eles fizeram história por atitudes corretas e corajosas no momento adequado. Fizeram história por defender a liberdade, o direito à livre opinião, a imprensa como fator de equilíbrio entre o poder e a sociedade, entre os que mandam, querendo mandar cada vez mais, e os que obedecem, mas são esmagados se não reagem às ameaças feitas pelos que, então como hoje, têm um objetivo: voltar a acabar com a democracia.

 

Alguns podem achar que a atual ofensiva contra a imprensa e os jornalistas nem é relevante. Podem minimizar os ataques a William Bonner. Mas se não se reage quando uma flor é arrancada, logo todo jardim estará ameaçado. E a tenta e frágil planta da democracia brasileira morrerá de novo.




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