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Woodstock

Lúcio Flávio Pinto - 16/08/2019

A primeira sessão começou às duas da tarde. Lá estávamos, rentes que nem pão quente, à porta do Cine Metrópole, na Galeria Metrópole, ao lado da mais bonita rua de São Paulo, a São Luiz, de um quarteirão cuidadosamente arborizado, com canteiro central, e nos fundos da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Naquele primeiro semestre de 1970, tínhamos em torno de 20 anos.

 

Marco Aurélio Nogueira (que viria a ser professor universitário), Reginaldo Forti (que seguiria a carreira de sociólogo), Oscar (esqueci do sobrenome dele, era o mais alternativo de nós, nem se importaria com o esquecimento, o Degola (o mais carioca, tanto que nem do nome consigo lembrar, apenas do Consolação de algum lugar no título onomástico), o futuro (grande) cartunista Bruno Liberati, o cineasta Cláudio Khans, Leon Cakoff, o mais célebre personagem,  (realizador do festival internacional de cinema de São Paulo, acho que o único falecido) e eu. Talvez a namorada do Leon também, mas não tenho certeza.

 

Entramos na primeira sessão e ficamos por mais duas, acho, porque o salão de exibição ainda não evacuado. Estávamos deslumbrados com o documentário sobre o festival de Woodstock, realizado nos Estados Unidos, no ano anterior (exatamente a partir de 15 de agosto de 1969, com mais três dias de duração), meio século atrás (meio século, mon Dieu!). A tela foi dividida em três partes, para pegar três cenas diferentes - recurso  tecnológico inteiramente novo, que estreava). O ritmo era frenético, como se dizia então. E as apresentações, de pirar (outra expressão do linguajar de época.

 

O que mais me agradou, marcou e se tornou inesquecível:

 

*Richie Havens cantando Freedom (e espancando seu violão para tirar um som surdo, cortante, áspero), sem os dentes da boca, que extraiu para ser mais coerente com suas raízes africanas (depois, em plena pérgola do Copacabana Pálace, perguntou aos jornalistas que o entrevistavam se havia no Brasil uma organização como a dos Panteras Negras, nos EUA, que ele também gostaria de ajudar; todos olharam para o belo céu do Rio de Janeiro ensanguentado, como no divino poema de García Lorca dedicado ao toureiro Ignácio Mejías).

 

*Jimmi Hendrix, manejando como nenhum outro sua guitarra (tocando-a até com os dentes) para que acoplasse ao Star Spangled Banner (a canção que virou hino americano) o barulho sincopado das bombas lançadas pelos jatos do império sobre o Vietnam (e, clandestinamente, o Cambodja também, contra o qual os EUA não tinham declarado guerra), um ruído lancinante, o mais agudo desde que Stanley Kubrick simulara a loucura armamentista no Dr. Strangelove.

 

*Janis Joplin, branca de alma negra, tirando Summertime dos salões de dança e do palco de teatro para as ruas sujas do Harlem, em Nova York, com uma esticada a Greenwich Village.

 

*Joe Cocker, suprimindo de With a Little Help From My Friends a entonação melodiosa dos Beatles e indo muito além do anti-clima dos Rolling Stones, que lançaram Let it Bleed contra o Let it Be dos antecessores e maiores rivais, que ainda acreditavam em Lucy in the sky with diamonds. Diamantes?: Não: milhares de bombas caindo dos imensos B-54 sobre a selva asiática.

 

Nenhuma dessas interpretações teria sido o que foi se seus autores não estivessem drogados, muito drogados. Temos que reconhecer a força desse combustível para a criação faustiana, sem igual, meteórica como a luz relampejante que corta o céu. Não esqueçamos, porém, do quanto esse momento de arte limítrofe do caos custou a Havens, Hendrix e Joplin. Por incrível que pudesse parecer, o mais alterado, em alguns momentos com a língua flamejante no ar, como uma das gárgulas da sofrida catedral de Notre Dame, em Paris, foi Cocker, o sobrevivente, que atingiu o primeiro estágio da velhice. Os demais foram efêmeros, uns pelas circunstâncias, outros porque queriam mesmo passar logo para outra, supostamente melhor.

O sonho estava mesmo acabando.




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