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Jair Bolsonaro: A carreira e o carreirista

Lúcio Flávio Pinto - 10/03/2019

Artigo no Ponto de Vista, revista Veja, agosto de 1986 -

Era agosto de 1986. Ele atravessou da Zona Oeste até a Zona Sul do Rio de Janeiro, do quartel do 8º Grupo de  Artilharia de Campanha Paraquedista, no suburbano bairro de Deodoro, até a sede da sucursal carioca da revista Veja, em Botafogo.Veja,nessa época, circulava com mais de um milhão de exemplares. Era a mais influente publicação da imprensa brasileira, a 5ª maior revista de informações do mundo.

 

Duas semanas depois, o artigo que o oficial da ativa do Exército entregara à revista saiu na seção Ponto de Vista, que ocupava a última página da revista paulista. O artigo era explosivo mesmo antes da sua leitura. Primeiro, pelo título: “O salário está baixo”, tratando da baixa remuneração dos militares.

 

Um segundo choque imediato estava na foto do autor do texto, um capitão paraquedista da ativa, envergando seu uniforme de campanha, com o destacado a boina de cor grená dos paraquedistas.

 

O capitão afirmava que as baixas nas fileiras militares, que era voluntária e não por punição, ao contrário do que sugeria o noticiário a respeito, se devia aos baixos salários pagos, que não condiziam com o preparo e o desempenho da corporação.

 

O capitão foi submetido a conselho de justificação do Exército, por infringir o regulamento disciplinar de forma grave. Foi punido com 15 dias de prisão no quartel. Sentença que selou o fim da sua carreira militar, destino que previu no próprio artigo.

 

No ano seguinte pediu demissão, ainda no posto de capitão. Imediatamente ingressou na carreira política, mantendo-se como deputado federal ao longo de 27 anos e se elegendo presidente da república no ano passado, como o ex-capitão Jair Messias Bolsonaro. Um autêntico herói, na interpretação pessoal – dele, de sua família e de seus aderentes.

 

Não propriamente assim.

 

Quando decidiu oferecer sua autêntica bomba à revista Veja, Bolsonaro não tinha qualquer ilusão sobre o que aconteceria com ele no Exército. Aos 31 anos, com 14 de carreira, já deveria estar pelo menos no posto de major. Estacionara como capitão pelos atritos registrados com seus superiores, sua impulsividade e indisciplina. Jamais se tornaria general. Talvez, nem coronel.

 

Bolsonaro sabia muito bem disso. Só conseguiu bom desempenho nas atividades físicas e operacionais, graças à sua força e aptidão atlética. Nenhum outro destaque aparece na sua ficha funcional. Ele já não queria mesmo fazer carreira. O que queria era ganhar bastante dinheiro para ter uma vida confortável. No quartel, não atingiria essa meta, inclusive pela remuneração.

 

Na verdade, ela não era tão baixa quanto Bolsonaro sustentou no artigo. Em valores atualizados, o vencimento de um capitão, como ele, era em torno de 12 mil reais. A distância de um sargento (com menos de R$ 4 mil) era muito grande, formando um caldo de cultura fértil para as sementes que semeou por Veja, hoje transformada por ele em uma das suas principais inimigas na grande imprensa nacional.

 

Três anos antes do artigo, coerente com esse objetivo, Bolsonaro cometeu a heresia de submeter ao seu comando três tenentes e dois sargentos para, durante suas férias, irem explorar um garimpo próximo à cidade de Jacobina, na Bahia. Chamado a se explicar, ele disse que a empreitada não dera o resultado previsto. Fora apenas uma atividade de hobby “ou higiene mental”.

 

No depoimento que prestou ao Conselho de Justificação, seu superior, o coronel Carlos Alberto Pellegrino, disse que tentou demover o então tenente, de 28 anos, de tentar a garimpagem, mas que notou “pela primeira vez sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que a fortuna pudesse proporcionar”.

 

No retorno das férias frustradas, Bolsonaro procurou se retratar com seu superior, mas teria “confirmado sua ambição de buscar por outros meios a oportunidade de poder realizar sua aspiração de ser um homem rico”, segundo o coronel. Pellegrino declarou que as abordagens do capitão aos seus subalternos sempre foram repelidas, “tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”.

 

Nesse mesmo ano,, a Diretoria de Cadastro e Avaliação do Ministério do Exército, numa “ficha de informações”, observou que Bolsonaro  “deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de garimpo de ouro”. Recomendava que ele fosse colocado “em funções que exigissem esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira”, já que dera “demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”.

 

Como ressaltara, Bolsonaro continuou a preparara sua saída do quartel “por cima”. Relatório confidencial preparado pelo Centro de Informações da Aeronáutica (o Cisa), logo depois da publicação do artigo, registrou que o já então capitão fazia uma “intensa campanha eleitoral junto ao público interno”, não qual distribuía folhetos”, que atraiu para ele a atenção dentro e fora dos quarteis, na esquerda e na direita, em função da gravidade da iniciativa de escrever o texto, “uma transgressão grave”, segundo a ata da sua punição.

 

Ela foi adotada, segundo a decisão do conselho, dentre outras razões, “por ter sido indiscreto na abordagem de assunto de caráter oficial, comprometendo a disciplina; por ter censurado a política governamental; por ter ferido a ética gerando clima de inquietação no âmbito da OM [Organização Militar], da GU e da força e por ter contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa paraquedista no âmbito do Exército”.

 

À esquerda, o “partidão” e o PC do B instruíram os seus militantes a explorar “ao máximo o descontentamento salarial dos militares, criado a partir da entrevista do capitão Jair Messias Bolsonaro”. À direita, oficiais da reserva e da ativa, incluindo o truculento general Newton Cruz, que comandou o SNI no governo do general João Figueiredo, organizaram manifestações em defesa do capitão.

 

Talvez quem mais ajudou Bolsonaro na saída do quartel e ingresso no parlamento foi o então presidente José Sarney, o primeiro da redemocratização do Brasil. Em fevereiro de 1986, no início do 2º ano da sua gestão, a inflação batera em 256%. Logo, entraria no quarto dígito.

 

Os quarteis realmente estavam inquietos, ameaçando a continuidade de um governo de frágil legitimidade e controversa legalidade. Seu sustentáculo na caserna era o ministro Leônidas Pires Gonçalves, o general tipo exportação o Exército. Mas a fragilidade consciente do presidente fez Sarney conceder o 13º salário aos militares, uma das suas reivindicações históricas.

 

Jair Messias Bolsonaro se tornou ali um político com mandato.

 

(Bolsonaro, o homem que peitou o Exército e desafia a democracia, dr Clóvis Saint-Clair, de 189 páginas, publicado no ano passado pela Máquina de Livros, é a melhor biografia sobre o atual presidente da república. Aliás, a única. No entanto, tem sido mal divulgada, quando chega a ser divulgada. É boa leitura para quem quiser aprofundar o conhecimento do personagem.)




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