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Bolsonaro: o que virá?

Lúcio Flávio Pinto - 11/11/2018

Numa democracia frágil nos seus 100 anos de existência na república, a vitória de Jair Bolsonaro pode representar uma ameaça a um patrimônio ainda tão pobre, mas vital. Ou o organismo político do Brasil já tem resistência a selvagerias, como as desta eleição?

O Brasil amanheceu o dia 29 de outubro de 2018 com a sensação de alívio. Depois de escaramuças, violências e ameaças, chegara ao seu desfecho a eleição mais diferente nos seus 129 anos de vida republicana. Tão conturbada e original que ninguém se lembrou de que neste ano a democracia brasileira completa 95 anos de sobrevida a cinco eras republicanas. Sobrevida mesmo.

Nesses quase 100 anos, o predomínio da democracia foi mais formal do que real, mais superficial do que substancial, sempre ameaçado por golpes e tentativas de golpe, e vulnerado por vícios persistentes. Uma república fragilizada pela ausência do personagem que, nela, deveria ser o principal: o povo.

A hegemonia política de elites, que se foram sucedendo no comando do país, indiferentes à maioria da população, como se o poder fosse um bem familiar e oligárquico, prejudicou – ou mesmo impediu – que a democracia fosse uma porta aberta para que os salões da mansarda da igualdade, fraternidade e liberdade fossem acessíveis a todos.

Os valores da democracia moderna se tornaram bens inalcançáveis num Brasil carente desse patrimônio, universalizado pela revolução francesa, sem o qual fica comprometida a distribuição dos bens e rendas do enriquecimento nacional. Sempre que precisa de uma reforma profunda, capaz de alterar o ingrediente mais nocivo do principal traço de continuidade do regime político, que é a brutal desigualdade social, os dirigentes do país, com a participação dos representantes políticos do povo, desgarrados da origem que lhes legitima o poder, fazem acordos e conciliam.

Mesmo quando alcançaram algumas conquistas e fizeram andar a máquina nacional, fracassaram nas tentativas de romper esse círculo vicioso, pela origem da própria república no Brasil, fruto de um golpe noturno contra o império liderado por chefes militares e aliados civis durante uma madrugada. O povo foi apenas espectador “bestializado” (na definição do jornalista Aristides Lobo) da altissonante transformação, sem entender exatamente porque o estimado Pedro II dormiu imperador e amanheceu destronado e despachado imediatamente para o exílio europeu.

O líder do movimento foi o adoentado marechal Deodoro da Fonseca, o avalizador militar do imperador num dia e o seu constrangido carrasco no dia seguinte. Sustentáculos do poder moderador num dia, as forças armadas passariam a ser o partido fardado da república, uma novidade e uma esperança que envelheceram rapidamente.

Para o bem ou para o mal, por autoria ou cumplicidade, pelo que fizeram ou pelo que lhes foi atribuído, as forças armadas passaram a ser o fiel da balança. Elevaram Getúlio Vargas à condição de reformador autoritário num momento e destituíram-no quando ele quis ir além do receituário de conciliação entre modernização e conservadorismo.

Apoiando ou combatendo a agitação civil, passando dos bastidores ao proscênio do enredo histórico, os militares acabaram por decidir eles próprios assumir o papel ativo no teatro político, permanecendo no poder por 21 anos, na mais longa ditadura no Brasil. Não só fizeram acontecer como assumiram o domínio da reconstituição dos fatos, através da mais dura censura aos meios de comunicação e de expressão de todos os tempos, nos tempos sombrios da repressão à liberdade.

O ranço autoritário sempre marcou a história da maior das repúblicas latino-americanas, mesmo quando apresentada com a linguagem dos “tenentes”, nossos “jovens turcos”, jovens nos anos 1920, já envelhecidos em 1964, quando lideraram um golpe pela defesa da democracia e, substituídos pelos novos centuriões, admitiram o golpe fatal, a ela, em 1968, desencadeado pelo AI-5.

Os grupos militares radicais resistiram o quanto puderam à volta da democracia. Membro da “linha dura”, Jair Bolsonaro foi o único que sobreviveu na atividade política para vir a conquistar, pelo voto, o que seus pares só cogitavam através de golpes de mão.

A democracia, na qual ele encontrou um lugar todo seu, uma extensão da ditadura e um quisto político, voltou, em 1985, com um remanescente do mundo passado, o maranhense José Sarney, e seus velhos esquemas de manutenção do poder político e de crescimento econômico. A reação veio na forma de um messias, o jovem alagoano (carioca por nascimento) Fernando Collor de Mello. Novo fracasso.

O povo apostou numa alternativa intermediária ao discurso radical do líder operário que Collor derrotou, em 1989. Insensível ao efeito maléfico do feitiço que transplantou para o Brasil, a reeleição, proscrita até então da república brasileira, numa das suas raras intuições positivas, Fernando Henrique Cardoso se preparou para sair do segundo mandato como o maior presidente do Brasil em todos os tempos.

Afinal, ele arrumara a máquina pública, criara uma moeda forte, fizera a economia crescer, instituíra programas (embora tímidos) de inclusão e assistência social, era afável, dialogava com todos, tinha paixão pela política e o poder que ela concedia a um intelectual. Sepultaria o mito de Getúlio Vargas e o seu espectro, que atormentavam FHC por suas raízes paternas, de militares e getulistas.

A crise econômica internacional foi o castigo merecido de FHC: ele saiu não só impopular como também amaldiçoado. A referência ao seu nome passou a ser maldita, a gerar rendimentos eleitorais decrescentes, mesmo entre seus correligionários tucanos. Como a última impressão é a que fica, principalmente a do desemprego, do legado do sociólogo foram excluídos os seus evidentes acertos, o maior deles o Plano Real.

Para sorte derradeira de FHC, ele passou a faixa presidencial a Lula. Não mais o barulhento e carismático líder operário, comandante de greves, mas um líder nacional, despojado do seu radicalismo pontiagudo (para um significativo contingente da população, situado o alto da pirâmide social) pela carta de alforria da própria elite (a “carta aos brasileiros”), que ele até então enfrentava como principal adversário (e à qual concederia benefícios “como nunca antes”, sem conseguir, no entanto, desnaturá-la para assim seduzi-la).

Foi um espetáculo que dignificou naquele momento a democracia brasileira, projetando-a internacionalmente: o sociólogo esquerdista Fernando Henrique Cardoso, o primeiro presidente a exercer o mandato por oito anos pelo voto direto e universal, graças à reeleição, estava sorridente e, aparentemente, feliz, por ser substituído por um adversário, Luiz Inácio Lula da Silva, filho do Nordeste, o primeiro presidente verdadeiramente do povo, também de esquerda.

Oito anos depois, o mesmo Lula entregaria a faixa a uma correligionária, ex-integrante da luta armada de esquerda contra a ditadura, que jamais disputara uma eleição. Com índices de aprovação recordes, Lula elegeria naquele momento quem ele quisesse, inclusive um poste, como eleitoralmente era, se dependesse só dela, Dilma Rousseff. O resultado da sua gestão confirmaria que Lula entregou o poder a um poste.

Nenhum partido comandou o Brasil por tanto tempo como o PT, entre 2003 e 2016, mantendo-se – com certa dificuldade, apesar da popularidade do seu líder – em confrontos duros com o PSDB, que o antecedera, nos 21 anos (o mesmo tempo de duração da ditadura) de poder de centro-esquerda e esquerda.

Lula estaria de volta à presidência, mesmo com o impeachment de Dilma, se não fosse vítima de uma conspiração das mesmas elites que ele tanto beneficiou, teleguiadas por Washington, segundo a versão petista. A Operação Lava-Jato não só lhe vedou o caminho de regresso ao poder institucional como fez uma revisão dos anos petistas sob uma nova ótica. Não mais por discussão ideológica, por divergência programática ou medição de forças retóricas: pela corrupção.

A corrupção deveria ser um elemento da manutenção no poder contra uma estrutura refratária à presença do povo, financiando a autonomia da máquina petista para se contrapor às engrenagens tradicionais e conservadoras. No entanto, ela também passou a favorecer pessoas, grupos, aliados e parceiros, que coletavam fundos para os partidos, mas passaram a confiscar uma taxa para os próprios bolsos. O marco dessa transformação (e conspurcação) foi a morte de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André, no ABC paulista, em 2002, às vésperas do início da campanha eleitoral de Lula, que ele coordenaria.

A avalanche de fatos comprometedores à honra, dignidade e honestidade de líderes petistas, acompanhadas pela irresignação de Dilma ao papel figurativo que a estratégia de Lula lhe destinara, romperam as comportas de contenção da boa imagem do ex-presidente e do seu partido. Ao mesmo tempo, o aparelho produtivo do país fazia água, em parte pelas medidas populistas (extrapolando o limite da sensatez para permitir a reeleição da presidenta e pagar os compromissos de campanha).

Para o PT, as acusações, os processos judiciais, a primeira condenação e a prisão de Lula são componentes de uma conspiração contra o povo brasileiro. Mas sua maioria, formalizada por mais de 55% dos votos válidos de 57 milhões de eleitores, quase 11 milhões a mais do que os de Fernando Haddad, contestou essa interpretação. O resultado: Jair Messias Bolsonaro é o novo presidente do Brasil.




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