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E o dia depois?

Lúcio Flávio Pinto - 28/10/2018

Não sei se o fato acontece pela primeira vez, mas é, no mínimo, inusitado. Um presidente da república recebe a confirmação da sua vitória para a presidência na sua casa. Sua primeira reação é transmitida informalmente por vídeo, pela internet, de forma simplória, rústica. Ele fala de improviso. Discursa para os seus aguerridos militantes, seguindo um raciocínio errático e tosco. Repete os mantras, as palavras de ordem, os gritos de guerra, os anátemas e algumas das barbaridades e primarismos da campanha eleitoral, como se ainda fosse apenas o candidato, não o presidente já eleito do 5º maior país do mundo.

Em seguida, de forma meio anárquica, lê um texto escrito, ordenado logicamente, compondo uma plataforma de governo apresentada à nação através de uma rede de imprensa, ainda na sua casa, no meio de um ambiente doméstico, como se tivesse sido aprovado para algum clube social ou recebido um título benemérito qualquer.

O primeiro momento pode ser entendido com o arremate de uma campanha presidencial sem paralelo na história republicana, superando, nas suas características formais, a que levou Fernando Collor de Mello à presidência, em 1989. Jair Bolsonaro só conseguiu chegar ao posto de capitão em 17 anos de carreira nas fileiras do Exército. Em 28 anos seguidos no exercício de sete mandatos de deputado federal, parecia condenado a ser uma exótica peça decorativa no parlamento - uma anomalia, talvez até uma aberração.

Ao longo de dois anos de perseguição ao objetivo de ser presidente da república, quando muito, poderia chegar a ser um novo Enéas. Seu partido não acreditou que esse projeto pudesse ter viabilidade. Ele teve que percorrer um rosário de legendas até encontrar uma sigla inexpressiva, o PSL, às vésperas da corrida oficial ao posto máximo do país.

Sem tempo na propaganda eleitoral oficial, recorreu às redes sociais, se apresentando como uma ousada alternativa ao establishment - não só de esquerda, mas também de centro-direita. Atraiu para si a insatisfação, a indignação e a raiva da maioria dos brasileiros com o desrespeito, o alheamento e os maus tratos que vinha sofrendo pela dominação dual de PSDB e PT. Com sua obsessão pela hegemonia no exercício do poder, os dois partidos mais afins do espectro político se engalfinharam, se sabotaram e criaram o caldo de cultura para um líder sebastianista.

Com todos os erros e absurdos, a campanha de Bolsonaro chegou à vitória, com 11 milhões de votos a mais do que a do adversário, Fernando Haddad,, depois de quase 14 anos seguidos de PT no governo, apesar da conjunção de fatores que prenunciava a sua derrota. O pronunciamento de improviso foi o último ato de campanha do mais qualificado e esperto líder da nova extrema direita no Brasil. Ele foi eleito pelo seu extremismo. Encerrado assim o rito de passagem?

Responde afirmativamente o discurso lido. O truculento, preconceituoso, violento, antidemocrático e primário Bolsonaro chegou ao fim com mais uma arenga totalitária, a derradeira. O presidente da república eleito abandonou as ameaças insensatas e as ideias impraticáveis e prometeu governador com a constituição, acatar o regime democrático, respeitar a liberdade, administrar com responsabilidade, economizar nos gastos do governo para reduzir a dívida bruta, ampliar o superávit primário, reduzir os juros, apoiar a atividade produtiva.

Tudo isso para valer, de verdade, legitimado por uma metamorfose real? A pergunta ainda não tem resposta. Nem a favorece o ritual religioso que se seguiu, com uma invocação puxada pelo deputado Magno Malta, derrotado na busca por um lugar no Senado. Pareceu uma entonação de horda, incoerente com a necessária pacificação nacional, que o presidente eleito poderia começar a antecipar, estendendo a mão aos que não votaram nele e o combateram, frequentemente com ódio e repulsa.

O derrotado também não se permitiu o mínimo de civilidade e elevação política para reconhecer a vitória do adversário no seu discurso, também partidário e sectário, ou numa comunicação pessoal ao vitorioso, desarmando as hordas. Ao ressaltar a coragem como a herança dos antepassados, que utilizará a partir de agora, na oposição, Fernando Haddad disse que esse empenho será feito para defender "a nossa democracia", do PT, portanto, não o modelo universal de democracia, edificado com tantos custos - materiais e humanos - pela cultura ocidental.

O aditivo de Haddad faz lembrar a democracia "à brasileira" ou "social", com seus complementos artificiais, que os comandantes do regime militar adicionavam para tentar fazer passar por democracia o que dela só existia como formalidade oca, vazia, desnaturada. Uma democracia utilitária que impediu Haddad de admitir os erros do PT, personificados pela presença ao seu lado de Dilma Rousseff, e o fez voltar ao bordão da injustiça na prisão de Lula, que ele abandonara, por orientação do próprio Lula, na remodelação do seu perfil rejeitado para aproximá-lo da maioria do colégio eleitoral, que acabou ficando com Bolsonaro.

A se manterem as posições assumidas pelos dois grupos antagônicos no momento imediatamente seguinte ao resultado do 2º turno, o Brasil continuará conflagrado.




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