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A questão chinesa

Lúcio Flávio Pinto - 19/10/2018

“A China não está comprando no Brasil, ela está comprando o Brasil”, alertou Jair Bolsonaro na semana passada. “Você vai deixar o Brasil na mão do chinês?", provocou ele, mexendo num vespeiro mantido até então sob aparente harmonia. Enfrentou um tema que a esquerda e sues aliados populistas evitaram tratar, apostando, talvez, numa acomodação natural.
Ocupando um espaço que a esquerda deixou vaga por inércia deliberada ou oportunismo, o candidato do PSL à presidência da república reaqueceu os laboratórios ideológicos da doutrina de segurança nacional, instalados principalmente nas instâncias militares. O vetor dessa preocupação é a Amazônia, onde a penetração chinesa é mais profunda e significativa, proporcionalmente, do que nas outras regiões brasileiras.
Academias e entidades da sociedade civil seriam um fórum mais adequado para responder com fatos e atualidades ao brado do capitão da reserva do Exército e deputado federal há 27 anos. Nos quartéis, esse debate não teria o mesmo clima de liberdade, controvérsia e respaldo técnico que a questão exige, por sua importância e urgência. A geopolítica tem sido má conselheira nas abordagens castrenses sobre a fronteira amazônica. Muitos equívocos foram gerados e causaram prejuízos históricos em função desse eixo doutrinário.
Se estivessem conectadas com a fantástica dinâmica da expansão das frentes econômicas na região, as universidades já teriam submetido à sociedade um painel global sobre a presença chinesa. Colocando os dados à luz do dia e abrindo um debate sem bitolas ou viseiras, permitiria ao país uma avaliação adequada sobre a questão, dissociando-a de abordagens ideológicas e políticas, e antes de erros do governo.
Com sua ofensiva maciça nas duas últimas décadas, a China deslocou do eixo mais dinâmico e cosmopolita da economia amazônica, voltada para a exportação, o vizinho Japão, que deslocara, por sua vez, a partir da exploração da província mineral de Carajás, os Estados Unidos.
Nenhuma presença estrangeira na Amazônia foi tão forte e ampla quanto a chinesa atualmente. Essa presença se acentuará ainda mais nos próximos anos, em função do enorme estoque de capital do país, usado para montar uma extensa rede de infraestrutura destinada a escoar para o litoral e, a partir dele, além-mar, as commodities vitais para a China, como minério de ferro e soja.
As linhas de transmissão a partir de grandes hidrelétricas amazônicas (Tucuruí, Belo Monte, Juruá e Santo Antônio) já estão sob o controle de empresas chinesas, que começam a avançar sobre as próprias usinas, fechando o pacote de energia. Esta situação levou Bolsonaro a uma metáfora doméstica que reflete o grau de conhecimento que ele tem dessa questão: “Suponha que você tem um galinheiro no fundo da sua casa e viva dele. Quando privatiza, você não tem a garantia de comer um ovo cozido. Nós vamos deixar a energia nas mãos de terceiros?”.
O alerta cai em solo propício a teorias conspiratórias por um detalhe omitido ou negligenciado: as empresas, à frente das quais se encontra a State Grid, são estatais. A Hydro Alunorte, dona da maior fábrica de alumina do mundo (instalada no Pará), que teve repercussão internacional ao ser acusada no início deste ano de despejar resíduos tóxicos da produção, é controlada pelo governo norueguês. A diferença é que a Noruega é uma democracia política. A China é uma ditadura. Mais refratária, portanto, ao controle externo – dentro e fora das suas fronteiras.
Não significa que, voltando aos idos de 1964, quando chineses foram arbitrariamente expulsos na onda de furor ideológico anti-esquerdista, só por isso a China esteja interditada no Brasil. Inegavelmente, porém, é preciso estabelecer um entendimento aberto e público sobre os grandes investimentos chineses, principalmente em setores estratégicos, como energia e transporte ferroviário, os que mais os interessam agora.
É possível combinar os interesses das partes num acordo proveitoso para ambas? É o que se deve tentar, já que o conflito previamente estabelecido (por uma diretriz do presidente da república, no caso de Bolsonaro ser eleito) “não é bom para ninguém”, tratou de ressalvar Fábio Schvartsman, o presidente da mineradora Vale, a segunda maior empresa brasileira, que tem na China o seu principal cliente. O executivo acredita que o candidato, se eleito, mudará o seu enfoque ao receber informações sobre “o estado das relações e da complementaridade das relações entre a China e o Brasil”.
Enquanto seu presidente falava, a Vale anunciou um novo recorde em sua produção de minério de ferro, em sintonia com o crescimento da demanda pelo mercado chinês.
No terceiro trimestre, a mineradora produziu 105 milhões de toneladas, 10,3% a mais do que no mesmo período de 2017, graças principalmente à nova mina de Carajás, a S11D, que entrou em operação no final de 2016. Ela passou a oferecer o minério de mais alta qualidade do mundo, recebendo prêmios por isso. É o que a China quer, na busca pela redução da poluição causada pelas siderúrgicas, as mais graves do planeta.
O Brasil não aproveitou a troca da hegemonia dos Estados Unidos pelo Japão, a partir do primeiro choque do petróleo, em 1973. Vai repetir o erro na onda chinesa ou vai aproveitar as lições do passado? Esta é a questão.
(Publicado no site Amazônia Real)




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