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Justiça e intolerância

Lúcio Flávio Pinto - 30/07/2018

Richard Carl Vogt, em imagem de 2014. -

O biólogo americano Richard Carl Vogt trabalha há 19 anos no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, o Inpa, com sede em Manaus. Há 18 anos é bolsista do CNPq, o Conselho Nacional de Pesquisas, no grau mais alto da carreira. Funcionário admitido por concurso, ele é um dos maiores especialistas nos estudos sobre tartarugas de água doce da Amazônia.

“No Brasil, entre suas principais descobertas está a capacidade das tartarugas de água doce se comunicar por meio de sons. É também um dos responsáveis por estudos que descobriram que o sexo dos filhotes de tartarugas é determinado pelo tempo de incubação e temperatura dos ovos. Em temperaturas maiores, sob o sol, nascem fêmeas. À sombra, a menos de 30 graus, nascem machos”, relata o site Amazônia Real, com sede em Manaus.

No dia 12, ele receberia o Prêmio Herpetologista Distinto 2018 concedido pela Liga dos Herpetologistas, em Rochester, nos Estados Unidos. A concessão foi revogada porque numa palestra sobre “A Excitação das Tartarugas de Rio Mississipi ao Amazonas”, na qual expôs suas pesquisas e descobertas sobre as tartarugas em estudos realizados em três países, de dois continentes. o pesquisador teria exibido fotos consideradas “provocativas”. Vogt foi acusado de sexismo (discriminação de gênero) “por apresentar fotografias de mulheres jovens, muitas brasileiras, de biquínis em poses”, segundo reportagem publicada pelo Amazônia Real l.

Na apresentação, segundo a Liga dos Herpetologistas (que estudam anfíbios e répteis), Vogt mostrou fotografias de trabalhos em campo com as tartarugas, muitas delas em margens de rios amazônicos. Mas, entre as dezenas de fotos haviam imagens encobertas por tarjas azuis, mas que foram classificadas como “provocativas” pelas mulheres presentes ao encontro, pois elas sabiam o conteúdo.

“As fotos mostravam mulheres de biquíni segurando tartarugas em poses que eram provocativas, mais do que o necessário para transmitir a intenção científica do slide”, disse a liga em nota, enviada à reportagem do site brasileiro.

Acontece que o powerpoint com a exposição do pesquisador foi censurada na edição que os organizadores do evento fizeram. Ao invés de consultar o autor e oferecer-lhe qualquer opção voluntária, o censor simplesmente colocou tarjas azuis sobre a parte de baixo dos biquínis. Mesmo que não houvesse reação às fotos, as tarjas sugeriram que ocultavam algo ainda pior. O apresentador só viu a alteração o momento de apresentar a exibição.

Os críticos de Vogt alegaram que ele deve ter tido mesmo a intenção de usar as jovens de biquíni, conforme seu próprio comportamento pessoal. O Inpa, porém, informou que não tem reclamação de assédio ou sexismo contra o pesquisador em seus comitês.

“Um inimigo meu entrou no powerpoint da minha palestra e, sem autorização de ninguém, colocou retângulos (tarjas) azuis em cima de fotos de mulheres, que ele achava precisar censurar”, afirma o pesquisador. “Não tinha nada de mais, foi pior fazer isso porque o público pensou que havia algo ruim por baixo”, disse o pesquisador.

Ele sustenta que os motivos alegados pela organização para revogar o seu prêmio, “pareceram uma armadilha para desacreditá-lo”. Ele nega que as fotografias fossem ofensivas. Disse que uma das mulheres que aparecem nas fotos, de biquíni, é sua esposa. Além disso, segundo ele, algumas das fotografias já foram publicadas em revistas científicas e livros.

As alterações nos slides, declarou a Ligas, foram feitas por um técnico, a mando do pesquisador Henry Mushinsky, que integra o Comitê de Planejamento e Gerenciamento do Encontro. “Ninguém da Liga de Herpetologistas teve acesso aos slides antes da palestra. No entanto, o Dr. Henry Mushinsky do Comitê de Planejamento e Gestão de Reuniões (que não faz parte da HL) teve acesso e foi informado de que havia material ofensivo e solicitou a um técnico que alterasse os slides. A HL também considera essa ação antiética para a comunidade científica”, diz a nota da Liga, enviada ao site.

A punição foi imediata, radical e intolerante. O cientista foi premiado por ter realizado “contribuições substanciais e significativas em vários campos da Herpetologia e dedicou sua vida à conservação e ao estudo das tartarugas de água doce”.

O prêmio, portanto, não foi dado por bom comportamento, mas por um trabalho científico de grande relevância não só na Amazônia, onde a tartaruga chegou a ser espécie em extinção, mas em dois outros países: o México e os Estados Unidos. Ele criou o Centro de Estudos de Quelônios da Amazônia (Cequa), no Inpa.Se é pessoalmente preconceituoso, aproveitador ou discriminador, deve ser criticado, processado ou até punido. Mas não como pesquisador. Quantos dos seus juízes e censores deram alguma contribuição equiparável às dele?

Sensata e sábia foi a reação do ex-presidente da Liga, Kennedy Dodd Júnior, que escreveu uma carta aberta em defesa do pesquisador e se opôs à revogação o prêmio ao cientista. Para ele, não há nada de ofensivo ou imoral nas fotos da apresentação. A carta pede a restauração do prêmio ao pesquisador do Inpa.

Para o ex-presidente da Liga, a revogação do prêmio não foi tomada devido ao conteúdo da apresentação, mas sim à utilização de acontecimentos anteriores à indicação. Dodd Júnior admite que Vogt utilizava fotos questionáveis em outras ocasiões e que possui um comportamento não convencional, ou seja, “ele diz o que está em sua mente”, nas palavras do ex-presidente da instituição.

“Torna-se então claro porque a apresentação do Dr. Vogt foi examinada e censurada sem o seu conhecimento (mais uma vez, quem fez e quem a autorizou?)”, escreve Kennedy Dodd Jr, que deixa no ar uma acusação: “Torna-se então claro sobre a rapidez da campanha nas redes sociais e o artigo no jornal local. O Dr. Vogt fez muitos inimigos e eles estavam prontos”.

Para o ex-presidente da Liga, a revogação do prêmio foi uma afronta a todos os ex-presidentes da instituição, que selecionaram colegas com base no desempenho acadêmico. E cita uma experiência pessoal, agressões que a esposa recebeu em casamento anterior.

“Os membros têm o direito de questionar o Dr. Vogt e confrontá-lo, mas não têm o direito a táticas questionáveis que vão tão longe a ponto de ameaçá-lo”, afirma.

Dodd Júnior diz que tem experiência em tratar com grandes jornais e estranhou como o caso foi tratado pelo veículo local. A reportagem do Amazônia Real informa que ele faz uma série de questionamentos sobre a divulgação e repercussão da história. Entre os pontos, pergunta por que o repórter do jornal local não procurou Vogt ou viu as fotos antes da publicação.

Mais adiante, Dodd Júnior diz não ter conhecimento de nenhuma denúncia sobre assédio de Vogt durante o encontro em Rochester e quer saber também por que as mulheres que aparecem nas fotos não foram procuradas.

“As mulheres brasileiras não são capazes de falar por elas mesmas?”, pergunta e continua: “Nenhuma foto de homens, incluindo o Dr. Vogt usando uma speedo (sunga), foi censurada. A censura de roupas só se aplica a mulheres?”

A ironia do cientista americano nos faz ver o quanto obtuso vai ficando um mundo cada vez mais chato e bitolado. O necessário combate à discriminação, assédio e intolerância, na defesa de saudáveis princípios éticos, morais e políticos pode ser travado sem a ajuda das bruxas de Salem.




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