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Tropicalismo: a arte diz não à ditadura

Lúcio Flávio Pinto - 24/06/2018

Quinta-feira, 31 de maio, feriado de Corpus Christi (por que feriado religioso se o Estado é laico e um dos seus fundamentos é a plena liberdade de  expressão e de culto?). Pego um CD que ainda não ouvira. Dedicado a Gilberto Gil, na Coleção Obras Primas. Tem aparência de jogada comercial da Polygam. Mais uma antologia?

A simplória ficha não dá o nome do responsável pela seleção das 12 músicas, com uma hora de duração, o melhor da melhor fase de Gil, em parcerias com Torquatro Neto, José Carlos Capinam (autor de um maravilhoso livro de poesia dessa época, Inquisitorial, com o mais impressionante poema que já li sobre o III Reich de Hitler), Tomzé e Geraldo Vandré. Músicas clássicas, como Geleia Geral, Parque Industrial, Miserere Nobis, Lunik 9, O Sonho Acabou e Oriente.

O máximo é o dueto dele com Jorge Ben em Filhos de Gandhi. Libertando-se da pauta e da bitola das gravações de discos, eles improvisam durante 12 minutos. É um momento excepcional na história da música brasileira, como se fosse uma sessão de jazz bem brasileira, excepcionalmente brasileira, uma resposta da melhor criação musical brasileira aos tempos pós-golpe de 1964 e antes da golpeada final do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

O longo diálogo da voz mais vibrante (e rascante) de Gil com o tom de um afrobrasileiro aveludado e manhoso de Jorge Ben me devolveu ao momento da gravação. Embarcávamos na melodia e incorporávamos a letra das músicas do Tropicalismo, que Gil e Caetano Veloso lideraram.

Liberávamos na música a energia reprimida pela censura e a vigilância da ditadura. Não estávamos submissos, nem controlados, muito menos vencidos. Gil e Caetano nos dava a régua e o compasso, como Gil diria, e era como se estivéssemos fazendo história junto com eles. Sob o magnetismo da ditadura, mas resistindo a ela, ao seu enorme poder de repressão, persuasão e mando. Como se nos alimentássemos de sonhos e utopias, recarregando o combustível para olhar mais além da escuridão que havia em casa esquina sombria, a esconder segredos e más surpresas.

Hoje, tenho outra resposta à questão que então nos angustiava: quem é melhor, o Chico Buarque ou Gil & Caetano? Não tínhamos dúvida: eram os dois baianos, nossos companheiros de viagem. Chico, insulado na memória e sintonizado com os melhores sambistas do passado (como Noel Rosa e Ismael Silva), era refrigério, livre navegar na harmonia, sem qualquer porto como destino.

O tempo engrandeceu Chico como compositor, minando-o como pensador e homem político, demasiadamente de partido, sectário, quase oportunista. Está entre os cinco maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Gil e Caetano caíram para o segmento seguinte, dos 10 mais.

Parte do que produziram está preso ao tempo, um tanto datados. Só se usufruí mais intensamente dessas músicas os que viviam na mesma conjuntura, da mais longa ditadura militar da história republicana brasileira. Gil e Caetano reagiram a ela como grandes artistas, não como militantes políticos, que não eram. Com sua criatividade de mãos dadas com seu público, numa irmandade que seria violentada e maltratada pelos donos do bastão de mando.

Ao ouvir, ouvir de novo e mais uma vez Filhos de Gandhi me senti revivido no transporte deste mundo minimalista e egoísta, inculto e arrogante, para o mundo de generosa partilha e entrega. Ouvi e dancei, como se ouvisse e dançasse diante da eletrola, que tocava no escuro para que vivenciássemos ainda mais a música e degustássemos a sua letra. Lá fora, a fera rugia.

Conforme registrei no meu primeiro Jornal Pessoal, na edição de d 7/8 de janeiro de A Província do Pará. Era uma página semanal, que enviava de São Paulo para Belém, publicada por A Província aos domingos e, depois, quando o jornal dos Diários Associados em Belém quis me censurar e eu não aceitei e me desliguei, por O Liberal.

Como pauteiro nacional de O Estado de S. Paulo, a minha mesa era uma estação de ida dos pedidos da redação paulistana para a rede de sucursais e correspondentes do jornal e de volta do material, pedido pela sede ou agendado pela rede de informações, a melhor que havia então no Brasil.

No final da noite, minha mesa estava ocupada por um vasto material, todo ele lido e anotado para servir de contrapauta, análise crítica e matéria prima para o JR, o jornal interno (JR porque de responsabilidade do coordenador de sucursais e correspondentes, Raul Martins Bastos, um dos melhores jornalistas com quem tive a honra de trabalhar). O JR chegou a ser mais lido na redação do que o próprio Estadão. Antecipou a adoção do ombudsman, criação sueca, e a crítica de jornais, com Alberto Dines, Sérgio Augusto e Tarso de Castro.

A matéria que então publiquei, 45 anos atrás, documentava as últimas aparições públicas de alguns dos artistas mais importantes do Brasil, forçados a abandonar o país pelo regime militar (Caetano e Gil para Londres, Chico para Roma). Apesar da censura e do olho gordo da repressão, o texto diz o que precisava ser dito.

Gil, o novo mar da Bahia

Na maioria das vezes, o disco é muito mais eficaz musicalmente do que a apresentação “ao vivo”. Mas nem sempre. Este é o caso atual de Gilberto Gil. Se vocês se prenderem apenas ao disco para analisar a obra dele vão cometer quadrados erros. A parte melhor e mais sublime está sendo exibida em espetáculos públicos. E o mais expressivo deles, mesmo de toda carreira de Gil, foi dado em dezembro [de 1972] na abertura oficial da temporada turística na Bahia.

Para três mil pessoas de indistinta composição social e formação cultural, reunidas no velho estádio de futebol da Graça (o mais importante até o surgimento da Fonte Nova), Gil mostrou quais vão ser os rumos da sua música e, por modelo, qual deve ser a mais nova tendência da música brasileira. Composições que aparecem bem comportadas no disco, embora, mesmo assim, estejam longe de um esquema convencional, foram inteiramente reinventadas, como Oriente e Aquele Abraço.

Cada uma delas na apresentação durou 17 minutos. Gil fez colagens, entremeando não apenas músicas suas, mas também velhos sambas de roda baianos, velhos talvez por idade, expressivos na apresentação dele. Sua apresentação foi o que os jazzistas chamariam de free-jazz ou algo parecido: improvisava, entrava e saía da harmonia, acompanhava paralelamente o violão, sempre sem deixar que o instrumento assumisse o comando ou se acomodasse num uníssono acadêmico.

Sobretudo, expressava fisicamente a Bahia, com toda sua complexidade cotidiana, com fatos como o incêndio de uma vila de pescadores na praia para para dar passagem a uma “urbanização” para turistas, a poluição do recôncavo, a tradição – expressa na classe média baiana, que se apega ao seu passado com grande orgulho étnico – e a modernidade – a outra face da classe média, morando em kitnet e comendo sanduíche em lanchonetes, mas com vista para a Barra – e todo um quadro sintético do drama nacional, também conhecido vulgarmente como “o sonho acabou”.

O espetáculo de Gil, surpreendentemente popular, num estádio de futebol, com entrada a 2 e 5 cruzeiros, era o oposto do de Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda, a 20 e 30 cruzeiros e no Teatro João Caetano (mal comparando, o Teatro da Paz deles), onde o povo não vai. Gil aceitou os 15 mil cruzeiros da Bahiatur para participar desse espetáculo, chamado de A Noite do Samba Baiano, pelo qual se considerava aberto o cenário para receber dois milhões de turistas sequiosos por folclore e idílios e fugas.

Nem por isso Gil perdeu a dignidade, se é o que estão cochichando. Ao final do espetáculo, cantando Aquele Abraço, no trecho em que afirma que “isso tem que acabar”, apontava, grave, para o tablado e citou os nomes de todos os grandes sambistas baianos que, antes dele, se haviam exibido, repetindo o refrão “isso tem que acabar, viu, seu Batatinha”. Os sambistas, também contratados pela Bahiatur, se exibiram com trejeitos, pastoras sensuais e inteiramente inofensivos; prostituídos, era a advertência implícita de Gil.

Sua outra definição no show parece levá-lo em direção à sua raça negra e à sua gente baiana. Atrevo-me a dizer que, embora pareça paradoxal, Gil é, hoje, o único compositor popular do Brasil, no sentido de que se liga a uma funda raiz e a submete a uma roupagem viva e, por isso mesmo, agressiva. Não é popular nos termos do hit parade, embora a reação do público, cantando com ele músicas que não são apresentadas nas emissoras de rádio e formando coro que dispensava o próprio autor (o que aconteceu muitas vezes, especialmente no final), deva dar muito o que pensar.

O público, insatisfeito com o ambiente geral, entendeu a inquietude do artista, que procura mostrar criticamente a realidade. O auditório intervinha com frequência, às vezes até obrigando Gil a impor silêncio para as músicas mais difíceis. Num momento, ele disse que só quem nunca pediu comida à beira de estrada não sabe que o sonho acabou. Alguém da geral gritou que nunca pediu comida na estrada, que isso é uma desonra. Gil respondeu agressivo: “Pediu, pediu, pediu”. O público explodiu em palmas.

Logo que Gil subiu ao palco, todos começaram a pedir pelo Expresso 222. Gil explicou que, por enquanto, só poderia atender uma música de cada vez e o expresso viria na hora certa. E completou, sério: “Mas um dia a gente vai fazer tudo que o povo pedir”. Nova explosão.

Um dos momentos mais fantásticos doe espetáculo foi, sem dúvida, quando ele cantou – e como nunca, e também como nunca tocou tão maravilhosamente também um violão que já é quase como o seu irmão – Água de Meninos. A música é uma das melhores que ele já fez: um retrato, pelo lado íntimo e verdadeiro, da essência de um povo. O lirismo preso à realidade. Por isso houve tantos aplaudos e – pasmem! – o povo cantou também.

Atordoado por tantas emoções, teimo em colocar como clímax o momento em que Gil canta a sua dialética ao narrar o incêndio proposital da vila de pescadores. Diz ele: “atrás da vila tem o recôncavo, atrás do recôncavo tem o mar, atrás do mar a Bahia, atrás da Bahia o Governo, que quer acabar com a vila”. Todos sentiram epidermicamente a mensagem porque esse é um problema de 1972 para a Bahia e não de um passado remoto.

Quero terminar dizendo para os críticos de música que Gilberto Gil está se tornando um dos nossos maiores instrumentistas sem a babaquice de um Hermeto Paschoal. As diferenças entre Gil e Caetano são agora mais visíveis, como, depois do espetáculo conjunto, mas não comum, de Caetano com Chico. Caetano é criativo, inventivo, brilhante. Notavelmente, muda a cada três meses. É a nossa deusa maior, sem sentido pejorativo. Gil é mais lento, mais pesado, menos brilhante, porém, de uma densidade incomparável. No espetáculo da Bahia, ele mostrou, terrivelmente, como abrirá novos rumos para essa densidade.




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