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Idéias e debates: Crise política, contra-revolução & Barbárie no Brasil

Alex Fiúza de Mello* - 25/05/2018

Créditos: Alex Fiúza de Melo: "Em plena Era da Globalização e do Conhecimento, pelo andar da carruagem, estaremos condenados, em definitivo, à escória do mundo".

A possibilidade de um agravamento da crise política e moral empurra o Brasil para o pântano de uma guerra civil, oficialmente ainda não declarada. Os sinais e sintomas do esfacelamento de todo lastro de ordem social, com a falência do desempenho estatal e da legitimidade representativa, projetam o pessimismo e o descontentamento crescente da população e ameaçam a sua crença no futuro.  Por muito menos, o estamento no poder da França do final do século XVIII foi guilhotinado.

Diante de tantos desmandos, corrupção, escárnio e desfaçatez por parte da classe política brasileira – fatos e evidências fartamente desnudados perante toda a nação –, o que impede que, no Brasil do início do século XXI, pelo descrédito em curso das instituições (Congresso Nacional, Presidência da República, STF, etc.), por revolta popular ocorra fenômeno semelhante?

Sociologicamente, a resposta pode ser encontrada na conjugação dos seguintes fatores:

1) O movimento de revolta teria que partir dos segmentos sociais excluídos (pobres e desempregados) e/ou prejudicados (classe média);

2) Como a classe média, por configuração social, tão somente almeja não perder seus direitos e status de consumo, tendencialmente não adota uma postura transformadora radical (prefere a mudança dentro da ordem);

3) A seu turno, à medida que as categorias excluídas foram, nas últimas décadas, cooptadas e controladas pelo PT (e agremiações satélites), e sendo o PT um dos artífices dessa cleptocracia pluripartidária que se instalou no país (como demonstraram o Mensalão, a Lava Jato e outras investigações em curso), fica inviabilizado o movimento revolucionário por conta da blindagem justo daqueles que se tornaram (associados a outras elites partidárias, grandes empreiteiras e capital financeiro) parcela do próprio estamento dominante (que Raymundo Faoro denominou de “os donos do poder”), iludindo que o fazem em nome do povo;

4) De todo esse quadro, resta a constatação de que o chamado “povo” (conjunto das classes potencialmente revolucionárias) ficou reduzido a mera massa de manobra por parte daqueles a quem caberia – por revolta popular – depor do poder.

E ante a ausência de revolução (transformação radical do status quo), mantido o quadro atual (sem solução) de espoliação das massas, com os mesmos atores no poder, configura-se, então, a crise na forma crônica de bandidagem, de contrabando, de violência, de caos. Sucumbe, passo a passo, o Estado de Direito. Instaura-se, progressivamente, o Estado de Guerra, a barbárie, a ausência de respública, com o aniquilamento da ordem constitucional e da democracia.

 O Brasil do século XXI se revela um projeto fracassado. Faliu a Nova República. Faliram as elites. Faliram as “esquerdas” (embotadas em suas incoerências e mediocridade). Faliram os empresários que, ao invés de apostar na ciência, na tecnologia e na inovação – no aumento efetivo de sua capacidade competitiva –, preferiram o lucro fácil, sob a insígnia do protecionismo concedido pelo Estado. Ninguém foi capaz de construir e liderar um Projeto de Nação, de País, de Pacto Federativo afinados com os desafios da contemporaneidade, de um mundo que se globaliza, imerso em inexoráveis interdependências e transformações, no contexto do qual o domínio do conhecimento será, como nunca na história, o fator e o vetor determinantes do prog resso humano e da consolidação da cidadania e da soberania de um povo.

A mentalidade dominante continua a ser a da República Velha: localista, regionalista, doméstica, de perspectiva de curto prazo, cujo horizonte não ultrapassa a próxima eleição. Construiu-se uma “democracia” meramente procedimental (aparente), mas sem “república” (valores e práticas sociais voltados ao bem comum). Restaram as sugadoras corporações: sindicais, empresariais, partidárias – todas ensimesmadas, autistas, entrópicas, conservadoras (portanto, contrarrevolucionárias), incapazes de representar (e pensar) o conjunto da sociedade.

Na moldura desse quadro, a política se esgrimou num mero jogo de oportunismo de curto prazo, de populismo demagógico, sem visão ou compromisso de futuro; ambiente em que verdadeiras quadrilhas de colarinho branco, detentoras de privilégios e imunidade, com a leniência, cumplicidade e salvaguarda dos “príncipes togados” (parte dos comensais), apossaram-se do Estado e, dele, transformado em bunker de negociatas, enriqueceram às custas da miséria (econômica e mental) da população, alijada e alienada de todo e qualquer processo decisório.

Hoje, a maior ilusão – plantada a um custo elevadíssimo para o erário público – é acreditar que, no Brasil, as eleições ainda representam um mecanismo de transformação social. Pura farsa. Pois poucos percebem que o “cardápio” oferecido de candidatos – ao qual a população não tem controle ou acesso – é definido à sombra das coxias, por agremiações obsoletas, corrompidas, internamente nada democráticas, controladas (ainda) por “coronéis” pós-modernos, que indicam a quem apoiar e financiar, sem qualquer prestação de contas aos eleitores. E que a ideia do novo “Fundo Especial de Financiamento da Democracia” – nome pomposo (e cínico) destinado a empoderar, ainda mais , os “donos do poder” – nada mais representa – e simboliza – que a continuidade e o aprofundamento desse roubo estrutural e sistêmico que se instalou, com a capa de legalidade, no país.

Sim, a classe política brasileira, há muito de costas para os seus representados, não acredita nos sans-culottes tupiniquins. Não se sente ameaçada. Não teme a força (e a forca) de uma revolta popular. Ao contrário: mantém a arrogância, a empáfia, a dissimulação e o escárnio como distintivos de sua conduta (além do desdém pelo povo), inebriada pelo poder e confiante na impunidade historicamente garantida de seu foro privilegiado e de uma ordem jurídica que lhe concede recursos protelatórios até a consumação da prescrição de seus múltiplos crimes.

Nessa trajetória, de tamanha cegueira e irresponsabilidade coletiva, na ausência de estadistas e de partidos que, verdadeiramente, encarnem o “príncipe moderno”, o Brasil, de efêmera memória e robusta ignorância, caminha, a passos largos, para a vala da história. Na contramão do processo civilizatório em curso. Sem qualquer credibilidade em plano internacional. Objeto de piada e desprezo no concerto das nações.  

Em plena Era da Globalização e do Conhecimento, pelo andar da carruagem, estaremos condenados, em definitivo, à escória do mundo. Continuaremos colonizados, dependentes, desorientados, sem acesso à soberania e à cidadania universal. Um semi-povo, uma sub-nação imersa num sebastianismo passivo, mais uma vez – por incapacidade de um protagonismo coletivo responsável – à espera (ilusória) de um “salvador da pátria” (não importa se de “direita” ou de “esquerda”) que, por pura mágica messiânica, indique-nos um caminho que não seja o abismo definitivo da servidão – que já se anuncia.

* (Sociólogo/cientista político. Doutor em Ciências Sociais (Unicamp). Ex-reitor da Universidade Federal do Pará. Ex-membro do Conselho Nacional de Educação. Atual secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará)




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