Banpará energia solar  julho 2024

A paixão amazônica (2)

Lúcio Flávio Pinto - 02/02/2024

 

Em 1956 o Brasil sediou o 18º Congresso Internacional de Geografia. Uma das excursões de campo programadas pelos organizadores para os participantes do encontro era pela Amazônia. Lúcio de Castro Soares, que comandaria a excursão, escreveu um livro-guia para os congressistas. Sete anos depois, em 1963, o Conselho Nacional de Geografia editou esse guia (Amazônia, Rio de Janeiro, 334 páginas), em formato pequeno, com muitos mapas e fotografias.

 

LEIA TAMBÉM:

 

A PAIXÃO AMAZÔNICA (1)

 

Passados 60 anos, o livro não mereceu uma só reedição, enquanto prolifera a subliteratura pretensamente científica sobre a região. Talvez o fato de haver sido produzido para um evento específico tenha imposto ao livro os estreitos limites de uma referência datada, que esgotaria com o tempo o interesse por ele.

 

Mas se é essa a razão do esquecimento, dela também resulta uma perda para todos os que, querendo uma introdução à Amazônia, são levados a embarcar na canoa furada de livros escritos às pressas, para atender encomendas, por pessoas que não conhecem realmente a região. Algumas que sequer estiveram na Amazônia, ou com ela tiveram rápido contato (frequentemente, nos últimos anos, pelo computador).

 

O pequeno e precioso livro de Lúcio de Castro Soares saiu do mercado ativo, não figurando em nenhum catálogo de editora, mas pode ser encontrado com alguma facilidade – e a preços baixos – entulhado em sebos. Lê-lo não é apenas uma das melhores maneiras de ter um correto acesso ao universo amazônico.

 

Permite formar uma imagem retrospectiva do drama regional, dos acertos e desacertos do processo de ocupação da maior fronteira de recursos naturais do Brasil – e a mais importante do planeta. E constatar que há muitos porta-vozes dos amazônidas sem efetiva delegação de representação e de poderes. Essa voz dita regional é falsa.

 

Quando Lúcio escreveu seu livrinho, a Icomi (Indústria e Comércio de Minérios) estava iniciando a exportação de manganês no Amapá (então território federal). Embora a jazida de Serra do Navio tenha sido descoberta casualmente pelo nativo Mário Cruz, localizar depósitos comerciais de minérios era apenas uma questão de tempo para algumas das grandes empresas siderúrgicas do mundo, especialmente as americanas, que já vinham participando diretamente – ou incentivando indiretamente – pesquisas geológicas nesse sentido.

 

Os brasileiros em geral, e os amazônidas em particular, não acompanhavam essas frentes. Não só – nem principalmente – porque elas eram conduzidas com discrição ou sigilo. Mas porque seus cotidianos não contemplavam esses temas. A Amazônia ainda vivia a esperança de “revitalizar” (como hoje se diria) o extrativismo vegetal, recuperar algumas áreas degradadas pelos esforços localizados de colonização (como na Zona Bragantina, a de maior densidade demográfica e mais extenso passado econômico da região) e “valorizar’ (o jargão da época) o produto regional, através da industrialização, induzida pela substituição de suas importações, com o surgimento de fábricas de bens de consumo imediato ou até mesmo indústrias de bens de capital.

 

Em qualquer das situações, o comando estaria com as elites locais e elas poderiam se movimentar num ritmo coerente com a lentidão relativa da região. Afinal, a União reconhecia o caráter – em grande medida autárquico – da Amazônia, permitindo-lhe desfrutar de um grau relativo de autonomia não conferido a nenhuma outra região brasileira.

 

Essa tolerância derivava do fato de que a região era pouco conhecida e o desconhecimento avalizava todas as expectativas que se tinha em relação a ela, principalmente as expectativas positivas e ufanistas (um aval aos sonhos de grandeza do país para um futuro garantido por Deus e guardado em berço esplêndido).

 

Uma autarquia federal, a SPVEA, tinha sido criada três anos antes, em 1953, exatamente para executar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia, estabelecido pelos constituintes nacionais em 1946, tendo como base um orçamento formado por 3% da receita tributária da União. Enquanto a lei não era aprovada pelo congresso (e jamais chegou a sê-lo), a SPVEA seguiu um Plano de Emergência, criado em 1954 por uma comissão na qual a elite local era maioria, e o primeiro plano quinquenal, em vigor a partir de 1955.

 

Todos estavam de acordo num ponto: a longa fase da Amazônia como reserva, depositária dos sonhos (e também dos receios) de um povo, além de caudatária de expectativas internacionais, tinha que acabar. A região iria deixar de ser promessa para se tornar realidade.

 

Lúcio de Castro Soares exprime com felicidade o estado de espírito de homens de ciência, como ele, e de todas as pessoas bem-intencionadas: a ciência funcionaria como o abre-alas das frentes pioneiras que devassariam as imensas entranhas amazônicas. Levas migratórias chegariam à região, possibilitando-lhe ter incrementos populacionais muito superiores às pobres taxas de crescimento demográfico endógeno, que impediam o homem de ser o líder da história, ainda então comandada pelos esmagadores elementos naturais. A Amazônia ainda era a página do Gênesis deixada em branco por Deus para ser escrita pelos homens, conforme Euclides da Cunha a definira no início do século. A escrita seguiria os ditames da inteligência, acreditava Soares.

 

Assim, os centros de produção de alimentos e todas as culturas de ciclo curto seriam instalados nas várzeas do rio Amazonas, fertilizadas naturalmente todos os anos, sem gravames para os futuros colonos, desde que alguns experimentos (como os canais de colmatagem do Maicuru, em Monte Alegre, que os congressistas visitariam na excursão) pudessem maturar, vencendo algumas das dificuldades que complicavam a sustentação de cultivos já estabelecidos ali, como a juta e o arroz, além da pecuária.

 

A terra-firme, onde estava a caa-eté dos índios, a floresta verdadeira, ficaria para uma segunda etapa, tanto por sua riqueza em madeiras consistentes e valiosas como por sua complexidade. O caminho prioritário de penetração ainda era o rio. Apenas em seus trechos encachoeirados seriam abertas estradas auxiliares para possibilitar a continuidade do transporte e um acesso limitado às terras mais afastadas.

 

A tarefa da ciência era corrigir os erros cometidos por uma colonização empírica, recuperar os danos e, com o apoio de conhecimentos gerados em experimentos tecnológicos, ir avançando progressivamente para o interior da mata, com atividades selecionadas e migração controlada. O homem sabia que a natureza era uma fonte de problemas. Mas tinha consciência de que precisava respeitá-la para não gerar problemas maiores e mais persistentes.

 

Alguns dos maiores entraves à humanização de uma paisagem dominada pela água e a floresta eram relativos à habitabilidade da área. Mas Soares saudava as conquistas já então obtidas: “A malária está, hoje em dia, controlada e praticamente erradicada de certas áreas e centros populacionais da Amazônia Brasileira, onde a profilaxia e o tratamento de outras doenças tropicais endêmicas vão sendo intensificados. Disso já existem animadoras provas”.

 

Outra ordem de restrições decorria da pobreza dos solos para a exploração agrícola, mas Soares acreditava que quando todos fossem convencidos da pobreza química e do alto grau de laterização dos solos, expostos à exaustão pelas intensas chuvas, o resultado seria a adoção de métodos de cultivo agrícolas racionais, ajustados às condições típicas da Amazônia, e o reconhecimento de que a floresta em equilíbrio com o ambiente tinha primazia sobre o solo pobre, que lhe servia de suporte mecânico, exceto nas várzeas.

 

A esperança de gente como Soares era de que a Amazônia estivesse prestes a inaugurar o novo livro, pondo fim às lendas sobre sua insalubridade para a vida humana ou a impossibilidade do estabelecimento de uma atividade econômica regular num caos que a diversidade de vida e o império dos elementos naturais tornava indomesticável.

 

Essa situação poderia ser modificada “quando a Amazônia se transformar numa área de atração humana, pelo melhor aproveitamento dos seus recursos naturais, pelo cultivo racional de seus solos, pela sua auto-suficiência alimentar, pela melhoria das suas condições de saúde, pela organização e eficiência de seus transportes, pela elevação do nível cultural de suas populações, para citar somente alguns de seus problemas mais aflitivos”.

 

Tal ofensiva permitiria vencer o “complexo patogênico tropical”, que mantinha em condição de pobreza e isolamento o homem numa região potencialmente rica, porque lhe faltavam os “recursos técnico-científicos” de que já dispunham outros povos, graças ao “extraordinário progresso alcançado pela Ciência e pela Técnica nos últimos anos”, possibilitando “a ocupação e o aproveitamento de grandes áreas tropicais e equatoriais, em condições muitíssimo melhores que no passado”. O plano de valorização executado pela SPVEA colocaria esses instrumentos valiosos ao alcance do homem amazônico.

 

O desafio era formidável, mas a confiança no conhecimento era maior ainda. “Não sendo região de fácil ocupação e aproveitamento, a Amazônia está, porém, longe de ser, como nos revelam as suas verdadeiras condições mesológicas, uma terra proibida ao homem civilizado, podendo-se mesmo acreditar que, convenientemente estudada e inteligentemente explotada, possa ela vir a se transformar num abundante manancial de matérias-primas essenciais à vida moderna e numa área altamente produtora de alimentos, abrigando, ao mesmo tempo, uma população racionalmente integrada em seu meio geográfico e de sobrevivência garantida por uma satisfatória estabilidade econômica e social”, previa Soares.

 

Seus sonhos, entretanto, só tinham alguma chance de se realizar se o ritmo de expansão das frentes econômicas pudesse ser mantido como se fosse uma hipótese de trabalho científico, admitindo pelo menos o método do ensaio e erro, além de uma tentativa experimental antes da execução comercial, a ciência antes da economia. Mas enquanto a Icomi embarcava no porto de Santana os primeiros milhares de toneladas que iriam alimentar de manganês os altos-fornos da Bethelhem Steel, nos Estados Unidos, e servir de estoque estratégico, várias campanhas de “aerogeologia”, a mais moderna das técnicas empregadas naquele momento para detectar depósitos de minérios, eram realizadas na Amazônia, num total de 1,1 milhão de quilômetros quadrados da região.

 

Alguns grandes grupos econômicos já sabiam o que queriam na região e utilizavam os meios adequados para atingir o alvo mais rapidamente, com maior eficiência. Os brasileiros não estavam atualizados a respeito. Tanto que no contrato com a Icomi, o governo estabeleceu que o limite permitido de exportação era de um milhão de toneladas de manganês ao ano, para que a Icomi também pudesse atender o consumo nacional. Na verdade, um milhão de toneladas era o máximo que a Bethlehem esperava extrair da mina de Serra do Navio, um volume tão alto que a exaustão ocorreu antes do final da concessão, de 50 anos. Enquanto o minério teve elevado teor, a indústria brasileira não viu a cor do manganês. Não dominando o enredo da história, não sabíamos como escrevê-la. Fomos usados.

 

As esperanças de Lúcio de Castro Soares se frustraram porque a ciência e a técnica foram deixadas de lado. Ou melhor: não foram usadas em favor do homem necessitado das ferramentas certas para se ajustar ao ambiente e utilizá-lo inteligentemente. Foram usadas na forma de motosserra, desfolhante químico, bulldozer e outras máquinas e conhecimentos para submeter a região.

 

O ritmo passou a ser aceleradíssimo, as frentes se multiplicaram, a migração se tornou incontrolável, os objetivos foram definidos categoricamente no mercado comprador e o homem local, como seu meio natural, passaram a ser um detalhe dessa estratégia. Mas o livrinho, com mais de 60 anos, permanece servindo de referência para uma Amazônia que podia ter sido e não foi, mas, quem sabe, ainda poderá vir a ser. Se, para isso, tomarmos o comando da nossa própria história. Para tal empreitada, o livro de Lúcio de Castro Soares continua com a mesma serventia das suas origens: é um guia.




  • Imprimir
  • E-mail