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Os coronéis dos castanhais e a neutralidade da mídia

14/03/2016

Quando leio, ouço e vejo empresas de comunicação defenderem a “neutralidade” e a “imparcialidade” no jornalismo , lembro do mestre Cláudio Abramo, cujos pensamentos foram reunidos no livro “A Regra do Jogo”, publicado em 1988. Eles nos ensinava que “a liberdade de imprensa só é possível para os donos do jornal”. Hoje podemos atualizar, “para os donos da mídia”. Abramo viveu dentro de redação por mais de 40 anos e dirigiu os grandes jornais brasileiros até os anos 70 do século passado.

Em 1984 Belém foi inundada por notícias de que um bando, liderado por Dimas Jesuíno Baião, aterrorizava os castanhais na região sul do Pará. Os dois principais jornais, “A Província do Pará” e “O Liberal” disputavam quem dava mais destaque às informações repassadas por donos de castanhais e pela polícia. Durante quase quinze dias o bombardeio foi intenso também pelas emissoras de rádio e TV. Dimas foi morto num “confronto” , mas seu “bando” emboscou e encheu de chumbo a “viatura policial”.

Foi neste momento que fui deslocado a Marabá, junto com o reporter-fotográfico Eurico Alencar, pelo jornal O Liberal; e mais o repórter Douglas Dinelli, o cinegrafista Peter Roland, e o operador de VT, José Carlos Rayol, da TV liberal, afiliada da Globo. Já no aeroporto nos esperava um dono de Castanhal, que desejava fornecer sua versão e ser o nosso “guia” durante a reportagem. Descartamos a “ajuda” e, pacientemente, fomos ouvir a polícia; o pessoal da Comissão Pastoral da Terra; o comandante do quartel militar, onde estavam presos alguns trabalhadores rurais; e outras fontes que acompanhavam os conflitos pela posse e uso da terra na região do Araguaia-Tocantins.

Fomos desaconselhados pala polícia, quando manifestamos o desejo de nos deslocar até São Geraldo do Araguaia, a fim de ouvir a população da área onde se movimentaria o “bando”. Recusamos o “conselho” e resolvemos seguir o nosso faro, a nossa intuição. Antes de viajar ouvimos um comerciante, um atravessador de castanha-do-pará. Ele nos revelou que Dimas era apenas um comprador do fruto, contratado por ele, para ofertar melhores preços aos coletadores.

Aí começamos a perceber o primeiro furo no embuste. Descobrimos que estava em jogo a quebra do monopólio no comércio local da castanha. Em São Geraldo Araguaia fomos direto à igreja católica. E conseguimos um guia confiável. Quem nos acompanhou foi o Valdir, agente pastoral bastante conhecido na área. Ele foi em pé, na carroceria do veículo, e nós, dentro do carro. Quando chegamos, o povoado parecia deserto. O rapaz se identificou e gritou pelo nome das principais lideranças. Aos poucos, assustadas, as pessoas foram surgindo.

Os camponeses estavam aterrorizados pela ação de jagunços e policiais, que espancaram pessoas, quebraram as poucas mobílias dos casebres, furaram panelas, mataram Dimas e ainda levaram presos vários lavradores. Pessoas simples nos relataram que depois desse terror, resolveram reagir contra seus inimigos, que julgavam serem apenas jagunços dos castanheiros, proprietários de títulos de aforamento de castanhais. Como ameaçaram voltar no dia seguinte, o grupo foi recebido com tiros de cartucheiras, armas de caça dos lavradores. Na realidade, o “bando” era composto por pistoleiros e policiais em carros particulares.

As nossas matérias desmontaram a farsa. Dimas não era bandido, mas seu trabalho foi considerado um pecado mortal. Os extrativistas, que viviam dentro dos castanhais como posseiros, nas piores condições possíveis, não tinham o direito de vender o que coletavam para ninguém a não ser ao dono da “propriedade”, que ditava o valor do litro da castanha. E ganhava rios de dinheiro exportado a amêndoa extraída com tanto trabalho, suor , malária e outros sofrimentos dentro da floresta. No dia que deixamos Marabá, o advogado da CPT, Paulo Fonteles de Lima, conseguiu um habeas corpus e os lavradores presos foram colocados em liberdade.

A tal “neutralidade” da mídia já tinha contribuído para legitimar a morte de Dimas e a prisão de inocentes extrativistas. A nossa viagem ao sul do Pará visava consolidar o desejo dos “coronéis” da castanha de fazer uma limpeza na área, em conluio com a polícia e a mídia. Mas ao recusarmos o apoio de uma parte envolvida no conflito, que desejava nos fornecer carro e pagar as nossas despesas, optamos por ouvir o outro lado e rompemos com a “imparcialidade” dos veículos de comunicação em que trabalhávamos.

(*) Paulo Roberto Ferreira é jornalista, professor, escritor e colaborador do portal www.oestadonet.com. br




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