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Em Santarém, o prenúncio do AI-5, que jogou o Brasil nas trevas políticas

Lúcio Flávio Pinto - 20/09/2018

A data – 20 de setembro de 1968 – não faz parte do calendário nacional, nem mesmo local. Talvez tenha se apagado da memória coletiva. Mas merece ser lembrada. No final da tarde desse dia, meio século atrás, cinco mil pessoas, quase 10% da população da cidade de Santarém, na época a terceira mais populosa da Amazônia (depois de Belém e Manaus) e a segunda do Pará, participaram de uma passeata. O objetivo era reconduzir Elias Pinto, de 43 anos, ao cargo de prefeito.

Político que começou no PTB de Getúlio Vargas e se elegeu pelo MDB, Elias conseguira, dois anos antes, a maior vitória eleitoral da história do município, mesmo sendo da oposição ao regime militar. Foi a incômoda exceção na vitória arrasadora do partido do governo, a Arena, em todo Estado.

Nove meses depois de assumir a prefeitura, o político foi afastado do cargo pela Câmara, que tinha 11 vereadores, oito deles da Arena. O Tribunal de Contas do Estado instaurou inspeção extraordinária para apurar as denúncias de irregularidades. Mas o juiz Christo Alves, do fórum da capital, autorizara a recondução do prefeito ao cargo, concedendo-lhe um mandado de segurança. A passeata era para dar suporte popular ao ato.

O governador do Estado, Alacid Nunes, que passara à reserva como tenente-coronel do Exército para seguir a carreira política, depois do golpe de 1964, que acabou com a democracia de 1946, se preparou para impedir a volta de Elias Pinto. Uma tropa de 150 homens da Polícia Militar, comandada pelo truculento tenente Lauro Viana, ocupando o cargo de delegado da polícia civil, foi colocada em frente à sede da prefeitura.

Quando a passeata se aproximou, Viana mandou os soldados darem uma salva de tiros para o alto, de advertência. Como a marcha prosseguisse, ele deu ordem para que os tiros fossem disparados diretamente contra a massa. Três pessoas foram mortas e cinco ficaram feridas. O cortejo foi desfeito, as pessoas fugiram, a justiça revogou a decisão do juiz, o prefeito foi cassado e Santarém foi declarada área de segurança nacional. Pelas duas décadas seguintes deixou de eleger seu prefeito, que passou a ser nomeado pelo governador, com a aprovação do governo federal.

Outros fatos agravavam o significado do episódio. Em 1966, o Pará realizou sua segunda eleição sucessiva. No ano anterior, fora um dos 10 Estados brasileiros que ainda puderam escolher o governador por eleição direta (não havia coincidência geral no país), abolida depois. Santarém firmara sua condição de município de oposição ao poder central. Esse detalhe turvara um pouco a imagem de vitória que Alacid queria impor ao seu aliado – mas já iniciando um afastamento – o coronel Jarbas Passarinho, que deixara o governo para se eleger senador e se tornar a maior liderança do movimento militar no Pará.

Surpreendentemente, o oposicionista Elias Pinto conseguira o apoio do deputado federal (da Arena) Haroldo Veloso, que chegou ao cargo de brigadeiro como um herói da Aeronáutica. De posições autoritárias, Veloso liderara duas revoltas no interior do Brasil na tentativa de depor o presidente Juscelino Kubitschek, uma delas em Santarém, em 1959, que o tornara temido e popular ao mesmo tempo.

Assumindo o comando do movimento para recolocar o prefeito no cargo e da passeata, Veloso foi o primeiro a ser atingido por um disparo, seguido por um golpe de baioneta na coxa. Os ferimentos o levariam a ser hospitalizado e a morrer em outubro de 1969, aos 49 anos.

Um avião da FAB, comandado pelo brigadeiro Paulo Vítor, foi a Santarém em operação militar retirar Veloso, protegendo-o contra a tropa de Alacid, que, a partir daí, passaria a ser considerado inimigo da Aeronáutica. A divisão se expandiu pelos bastidores do poder militar.

Colegas de Veloso exigiram a apuração dos fatos e a punição do governador pelo ministério da Justiça, à frente do qual estava o paulista Gama e Silva, ex-reitor da USP e um dos civis de maior destaque da linha-dura, a corrente que impusera o marechal Costa e Silva, ministro da Guerra, ao marechal Castelo Branco, primeiro presidente depois da deposição de João Goulart. Talvez a morte prematura de Veloso tenha estancado esse antagonismo antes que ele irrompesse numa conflagração aberta entre os dois grupos.

Enviado pela Câmara Federal para apurar os fatos, o deputado Dnar Mendes, apesar de pertencer à Arena, em seu relatório final responsabilizou o governador pelas mortes e condenou sua atitude de usar a tropa embalada e autorizada a disparar contra a multidão. Três meses depois do episódio, porém, o governo federal editou o AI-5, assumindo por completo que estava à frente de uma ditadura aberta e não mais disfarçada, como tentara fazer Castelo.

O episódio de Santarém foi uma espécie de prelúdio dos anos de chumbo, que começaram ali.

(Publicado no site Amazônia Real)




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