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Bernardo Kucinski: do jornalismo à ficção

Lúcio Flávio Pinto - 04/01/2018

Créditos: Á esquerda, Lúcio Flavio Pinto, o livro e o também jorrnalista Bernardo Kucinski.

Aos 70 anos, Bernardo Kucinski realizou uma façanha de causar inveja a muitos dos seus colegas de profissão: transpôs as muralhas do jornalismo e se lançou à planície da ficção. Na década de 2010 escreveu K – Relato de Uma Busca, publicado em 2012. Deu densidade literária a um fato real: a busca do pai pela filha, sua irmã, que desapareceu durante a ditadura militar.

Aos 80 anos, Bernardo lança seu segundo romance, Pretérito Imperfeito. Li o primeiro: gostei e o comentei aqui. Ainda não vi o segundo, que dizem ser outra forma de tratamento dos mesmos temas: paternidade, ausência, procura.

Eu próprio gostaria de transpor para a ficção parte do que acumulei na longa experiência de jornalista. A falta de talento me tem impedido de dar esse passo. Com alegria, acompanhei a transposição de Bernardo. Fiquei satisfeito pelo resultado positivo que ele conseguiu no primeiro teste. Não é tarefa fácil para um jornalista, que se condiciona – e às vezes se reprime – na busca pela objetividade da sua escrita, que tem que ser integralmente fiel à sua percepção dos fatos.

A ficção deve completar a tarefa de libertar Bernardo do dogmatismo e da intolerância com que ele se houve durante o período em que foi membro da engrenagem de poder do PT, na condição de assessor especial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, durante o primeiro mandato de Lula.

Durante essa fase final da sua carreira de jornalista, nossa relação azedou. Em 1991, ele me deu uma grande alegria, ao registrar em seu livro já clássico, Jornalistas e revolucionários, que, junto com Ivan Maurício e Paulo Francis, eu adotara um estilo definitivamente outsider de exercer a profissão. Numa era em que a democracia parecia aposentar a imprensa alternativa, eu era alternativo.

Travamos uma polêmica no Jornal Pessoal por causa das minhas críticas a Edmilson Rodrigues, prefeito petista de Belém. A discussão chegou a ser muito dura e nos afastou. Na sua última vinda a Belém, houve uma tímida reconciliação, estabelecida à base do esquecimento do que nos separou – e continua a nos separar, mas agora, talvez, sem provocar sectarismos. Fico bem posto na condição de leitor de um ficcionista que começou tarde, mas começou bem – e assim prossegue. Bernardo Kucinski mudou de forma de expressão na hora certa, enquanto tem hora e vez.

Reproduzo trechos da entrevista que ele deu a André Oliveira.

P. Há uma epigrafe do livro [Pretérito Imperfeito, lançado pela Companhia das Letras no dia 4] que diz que todas as dores podem ser suportadas se você as colocar em uma história. Foi por isso que você começou a escrever ficção depois dos 70 anos?

R. Não é por isso. O K surgiu quase espontaneamente. Eu comecei a escrever porque subitamente se criou um hiato, um vazio, na minha vida. Eu trabalhei no Governo Lula e quando voltei para a Universidade, veio minha aposentadoria compulsória. Aos 70 anos, eles te mandam embora, nem importa se você está bem ou não. E eu fiquei meio assim: fora do Governo, fora da Universidade. Também estava muito desencantado com o jornalismo, até mesmo com o jornalismo alternativo em que eu colaborava. Aí, de repente, baixou o espírito e eu escrevi primeiro uma pequena novela policial, que me saiu muito fácil. Depois disso, passei a encarar a escrita como meu ofício. Ainda preciso melhorar minhas deficiências, mas eu gostaria de ter começado antes, de ter feito essa transição do jornalismo para a literatura antes.

P. Seu livro Jornalistas e Revolucionários é uma referência sobre a história da imprensa alternativa no Brasil. Você disse que agora está desiludido. O que se perdeu no caminho?

R. Primeiro, existe hoje um discurso muito maniqueísta, muito preso a frases feitas. Segundo, muito prisioneiro de uma visão de mundo que acabou. O mundo da classe operária não existe mais. É outro mundo. Ainda é capitalismo, mas outro capitalismo. Ao mesmo tempo, essa imprensa tem hoje muito pouco recurso. Ela trabalha, até onde sei, com muito discurso e reprodução de notícia, mas com pouca geração de informação autônoma, pouca reportagem, que permitiria a ela trabalhar também um pensamento mais autônomo.

De qualquer forma, acho que há coisas boas: ela foi muito eficaz, por exemplo, em captar novas lutas como questões de gênero, raciais, de etnia e ecológicas. Por fim, na época em que eu trabalha na imprensa alternativa, tinha a ditadura, a guerra fria, a guerra do Vietnã, a revolução cubana. As grandes utopias ainda estavam. Hoje onde estão?

P. Você foi assessor especial na Secom durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula. Como via o jornalismo brasileiro e como o vê agora?

R. Eu tenho uma visão crítica da imprensa convencional brasileira muito antiga, que é até um pouco desagradável. Eu fui jornalista na época de ouro do jornalismo brasileiro. Aquilo era uma fé, uma religião para mim. O que vejo agora é que, para além do já danoso alinhamento unidirecional exacerbado da mídia, existe uma ética própria do jornalista brasileiro com a qual eu não concordo. É o sujeito que se tornou malandro, que vai fazer um jogo malicioso em entrevistas e reportagens para ganhar destaque. É um processo pavloviano em que o jornalismo mais austero, mais sério, ponderado, perdeu espaço para a malícia.

P. O jornalista Cláudio Abramo dizia que a ética do jornalista deveria ser a mesma ética de qualquer trabalhador.

R. Poderia ser algo assim mesmo, porque a ética clássica que se ensina nas escolas de jornalismo e que aprendemos, no fundo, veio dos Estados Unidos. Não é brasileira. Lá é que se criou o código de ética. Os princípios fundamentais são: a busca da verdade e fair play. Mas, veja, essa palavra é tão estranha à nossa cultura que não tem tradução. Podemos dizer que é jogo limpo, mas não é exatamente isso. O fair play é você ser honesto com o entrevistado, não tentar passar a rasteira nele. E acredito que é isso que não sobreviveu no Brasil. Foi outra ideia fora de lugar aqui, porque não existe mais fair play no jornalismo.

Acho que a paternidade é uma relação de muita atividade, mas de pouca conversa

P. Falando em fair play, você acha surpreendente o Bolsonaro, um admirador do regime militar, estar em segundo nas pesquisas eleitorais para 2018?

R. Não surpreende, porque sempre houve um processo social das classes dominantes – desculpe usar o chavão – de não expor as atrocidades da ditadura de forma a criar uma consciência crítica. Aqui é tudo jogado meio debaixo do tapete, a lei de anistia perdoou todos, ninguém pode ser processado, ditadores continuam sendo homenageados com os nomes das ruas. É uma dominação pela cultura. Nesse tipo de ambiente, sempre houve admiradores, pessoas que se lembram de parte dela, mas não do todo.

Lembram-se do emprego, do milagre econômico, mas não das atrocidades. E o Bolsonaro surge nesse momento de crise única. De falência da política como atividade, de falência do Estado. Tudo ruiu. Mas acredito que o Bolsonaro é um fenômeno limitado, isso porque ele vai contra a vanguarda que abandonou a grande utopia, mas continua com pequenas utopias: igualdade de gênero, combate ao machismo, a necessidade de, através de políticas diretas, compensar os 450 anos de escravatura. Todas essas lutas são muito recentes e ele vai contra isso tudo.

P. Mas 60% dos possíveis eleitores dele são jovens.

R. Mas o fascismo da Alemanha, por exemplo, vem também de jovens, especialmente dos da Berlim Oriental. Em Israel, é a mesma coisa. São jovens de 20, 25 anos. Não é uma coincidência, mesmo porque quem mais sofre com os efeitos nefastos do neoliberalismo são os jovens. Eles não têm emprego, não têm perspectivas. É normal que sejam os mais revoltados.

P. Você pensa em colocar esse momento do país em algum de seus próximos livros?

R. Outro dia, eu assisti a um filme chamado Retorno a Ítaca [com roteiro do escritor Leonardo Padura], em que um grupo de amigos cubanos se reúne depois de anos para falar sobre suas vidas e sobre o país. Tenho a intenção de fazer algo semelhante, já que tenho um grupo de amigos bem semelhante. Falamos do passado, mas também de todos os ataques que o país está sofrendo depois do que eu considero ter sido golpe institucional. Precisou ser dado um golpe para que houvesse outros ataques, como o teto de gastos e a nova lei trabalhista.

O cenário agora mostra o Lula em primeiro lugar e crescendo nas pesquisas, mas acredito que ele não vai ser candidato. Sua eleição é incompatível com tudo o que aconteceu até agora. Ou vão dar um tiro nele, como acontece nos Estados Unidos, ou vão torná-lo inelegível.

No começo, a Lava-Jato tinha um enfoque muito grande no PT, ganhou adesão da mídia e de parte da sociedade por isso, mas depois ela passou a atingir outros alvos. Agora, com a aproximação das eleições, o que parece é que o PT começa, mais uma vez, a ser o foco. Ninguém sabe o que vem pela frente, por isso, acho que a frase do momento é: quem sabe o que vai acontecer é porque está muito mal informado




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