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Choro por ti, Belterra! Capítulo final

07/07/2016

Atrás da Prefeitura avistamos um pequeno bosque de velhas e retorcidas seringueiras. Parei o carro e papai logo abriu a porta e desceu. Continuei no assento e observei o meu velho caminhando devagar, por entre as árvores. Ao chegar ao meio do bosque parou, de um jeito e numa posição que, num instante, o enxerguei como se ele fosse uma daquelas árvores, como se já idoso tivesse se reintegrado ao grupo de suas irmãs, de quem se separara em criança.

Ali estava papai, de volta à sua “aldeia”, depois de muitos anos, bem mais do que os 20 que Ulisses estivera fora da sua Ítaca. Ali estava papai, sobrevivente.de uma guerra na qual foi lançado no exato instante em que veio ao mundo. Bem sabia eu o que ele sentia e os pensamentos que os sentimentos geravam em sua mente, àquela tardia hora do trabalhoso dia que atravessáramos.

“Filho, queria acabar entre estas seringueiras, ficar aqui fincado que nem pau seco com minhas cascas ressequidas, até as chuvas me desfazerem em estrume dessa grama que pisamos. Porque as amei na infância, com elas brinquei e conversei nas horas da minha alegria e da minha tristeza. Aqui, neste bosque, no tempo em que vida havia aqui, assisti à lenta volição dos crisântemos, a sua desfolhação. Psiu, almas que vejo em todos os lugares, almas penadas que não desistiram desse lugar! Psiu, almas irmãs! Não fujam de mim, pois logo me juntarei a vocês, almas queridas, almas amigas. Falem pouco, queridas! Falem devagar! Que eu não vos ouça, sobretudo com o pensamento. Pois dói ouvir o que estão a me dizer. O que quis? Eu não quis: tenho as mãos vazias. O que fiz longe de vocês? Eu não fiz: vejam o vazio que trago no peito. Nada fui e nada realizei de grande em outras plagas; volto tão pobre e vazio como parti; peço-vos que me aceitem mínimo e mísero como estou.”

  Bosque de velhas seringueiras em Belterra

Num gesto amistoso, papai apoiou-se com o braço direito no caule de uma das seringueiras, e então percebi a ação nefasta do sol e de outros agressores sobre a sua pele, mãos e braços engelhados, mui parecidos com a casca da árvore cheia de cicatrizes provocadas pela imperícia dos “cortadores” (como eram chamados os homens encarregados do corte das seringueiras, nos dias já remotos em que os americanos organizavam a extração da borracha em Belterra).

Do mesmo modo paradoxal, o clima de desolação que víramos em todos os lugares persistia ali. No gramado que se espalhava debaixo das árvores, notei apenas folhas recentes, a denunciar que alguém, naquele mesmo dia ou na véspera, passara o rastelo na grama. Mas cadê o jardineiro? Mesinhas de madeira, ainda que toscas, e bancos, ainda que improvisados, viam-se no centro do bosque. Mas onde anda quem as arrumou? Num galho de uma das altas seringueiras uma lâmpada, como um olho perscrutador, espécie de holofote, ficara acesa desde a noite anterior, por descuido de algum funcionário, ou porque se esperavam pessoas para alguma atividade que aconteceria na noite que se aproximava. Mas qual atividade seria se, às 17 horas, quando em todas as cidades do mundo há um fervilhar de gente que volta para casa após um dia estafante, aqui em Belterra nenhuma alma vivente se movimenta? Para todos os lados que olhasse só via desolação, a mais absoluta solidão. E esse quadro, que dentro daquele dia fantasmagórico até já parecia “normal”, de repente assumiu contornos pavorosos.

Dentro de mim já veloz a noite e tudo se misturando, eis que à minha frente surge um cemitério. Com seus braços e pernas fininhos e engelhados, a pele ressequida se confundindo com a casca verde-cinza das árvores, papai já não é um homem e sim a alma insepulta de uma seringueira. Chegara, enfim, depois de girar em círculos num deserto, à vila da sua infância. Descera do comboio da vida com os passos de um viajor cansado. Olhou. Viu. Comparou. As mesmas estradas, as mesmas árvores, mas cadê as pessoas? Apenas o amarelo-escuro e a poeira nos olhos e na alma; janelas e portas abertas, por onde ninguém passava; roupas nos varais e limpas calçadas, para quem e para quê, se tudo é velho onde foi novo? Até a casa que pintaram de novo é mais velha porque pintaram de novo.

Saí do carro e andei pelo bosque com esses pensamentos. Por um instante que pode ter durado uma eternidade, fui e voltei aos lugares em que fui e que não fui. Todas as leituras e personagens que movimentam a minha lembrança desfilam diante do meu ser, e este, ao voltar para a luz dessa tarde que se vai findando, pergunta-me:

“E eu, o que sou agora?”

E outra voz que é a mesma, responde: “Diante da paisagem, o que vês és tu”.

Como um eco do que já ouvira em pensamento, ouço papai me dizer:

– Eu queria acabar entre essas seringueiras.

Num gesto patético e comovedor, vejo-o abraçar-se ao caule da velha seringueira, sua irmã, e assim ficar por um longo tempo; depois se afasta e toca com a ponta do dedo os nós da casca áspera.

– Olha só que maldade fizeram com ela!

E conta que os americanos trouxeram dos Estados Unidos as sementes tratadas cientificamente dentro de uns copinhos e as metiam na terra de um viveiro e, quando alcançavam um palmo e meio de altura, o engenheiro esticava uma linha e os furadores plantavam as sementes em fileiras, três metros uma da outra, não se enxergando o fim, e ali as mudinhas, protegidas da praga pelo veneno que os examinadores bombeavam em redor dos pés, esperavam as chuvas do inverno, e assim cresciam rapidamente e, com uma faquinha em formato de foice, recebiam o enxerto das seringueiras nativas; os brotos eram apertados com cera e gaze, como se enrola um ferimento, na casca da seringueira plantada, evitando-se, assim, a infiltração de água, e, 45 dias depois, a gaze era retirada do broto que já despontava na casca da seringueira, tudo para dar longevidade e aumentar a produtividade da árvore, verdadeira ciência, não era qualquer um que cortava a seringueira, havendo cursos para cortadores. O primeiro corte só podia entrar um pouquinho na casca, pois, se o cortador afundasse o golpe, formava-se um nó e a seringueira se estragava. Duzentas seringueiras por dia era a tarefa de cada seringueiro; enquanto não cortasse tudo não podia ir embora; e a bica (vasilha de alumínio) tinha que ser fincada no ponto certo, sem nenhum erro, senão a seringueira ficava fora de extração até ser recuperada, mas, na azáfama de completar sua tarefa, o cortador acabava errando o corte. Não era despedido por isso, mas tinha que voltar para o curso; entretanto, se reincidisse no erro, o transferiam a outro tipo de serviço. O cortador também tinha que colher o leite às 11 horas. Depois de fincar a bica, vinha com um balde e uma cinta colhendo o leite, e, lá pelas 15, terminava o serviço. Tinha ainda que limpar a árvore da sobra do leite, o “sernambi”, e, para evitar que o leite coalhasse, colocava uma solução e só então os baldes eram levados para a beira da estrada, onde os carros vinham buscar. Toda essa ciência, infelizmente, se perdeu depois que os americanos abandonaram o projeto e voltaram à sua terra.

 Nos produzidos na casca da seringueira

Papai fechou-se novamente num silêncio que dizia mais coisas do que mil palavras. E nesse silêncio fomos conversando:

“Na verdade, filho, nada está mudado por aqui, ou pelo menos não dou por isso. Há sessenta e cinco anos! O que eu era então? Ora, era outro. Sessenta e cinco anos inúteis (sei lá se o foram! Sei eu o que é útil ou inútil?). Sessenta e cinco anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)”.

“Sim, pai. Eu também tento reconstruir a minha imaginação. Quem eu era e como era quando menino, há cinquenta anos, onde nasci. Não me lembro, não me posso lembrar. O outro que aqui viveu, se existisse hoje, talvez se lembrasse. Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro do que esse eu-mesmo que há cinquenta anos partiu”.

“Sim, filho, o mistério do tempo. O não se saber nada. O termos todos nascido a bordo ou entre dois lugares”.

“Símbolos, pai. Símbolos. Tudo são símbolos. Isto é a realidade”.

“Sim, filho. A realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. Só nós somos sempre iguais a nós-próprios. Vê de longe a vida, filho, nunca a interrogues. Ela nada pode dizer-te. A resposta está além dos deuses. Suave é viver simplesmente.”

Ainda falei mais algumas frases, mas esse diálogo da alma foi interrompido porque papai, como quem enxerga um fantasma, exclamou, desta vez com a boca:

– Será possível que seja o mesmo?

E correu em direção a um velho trator que desde o começo estava lá, mas só agora avistamos nas bordas do bosque de seringueiras.

Eu já vi homens se emocionarem com tantas coisas: um animal de estimação, uma bela namorada, um filho esperado, um presente recebido, um tesouro encontrado, o pôr-do-sol, o canto dos pássaros, o céu estrelado ou a lua-cheia nascendo do mar... Mas era a primeira vez que via um homem correr para uma máquina como quem corre para o braço da mulher amada ou ao lugar dos sonhos.

Como um menino, o homem de setenta e oito anos saltou sobre o enferrujado estribo do velho trator e logo estava sentado no que um dia fora uma boleia.

Largo era o sorriso do menino; seus olhinhos brilhavam.

Eis que nesse exato momento surgem, como que do nada, alguns meninos. Ao verem papai na boleia do trator, largam suas bicicletas e se juntam a ele, que agora brinca de dirigir o trator e imita o seu ronco. Mas, de repente, do mesmo modo inesperado como apareceram, os meninos sumiram. Até hoje me pergunto se aqueles meninos de fato existiram ou surgiram da minha imaginação, pois papai não se lembra de tê-los visto.

Trator trazido pelos americanos para Belterra

O dia caminha para o seu fim. Como todas coisas naquele dia em Belterra, tudo naquele momento mostra-se duvidoso. Mas também para que complicar inutilmente? Para que ficar pensando no que impensado existe? Ora, não nascem ervas sem razão dada? Para elas olhos, nas razões, são a alma. Como através de um rio as contemplamos. Os americanos há 70 anos deixaram o lugar mas é como se nunca tivessem saído; sua lembrança paira em tudo o que restou em Belterra, sendo lícito afirmar que Belterra é a sombra de um grandioso projeto que não deu certo, de um sonho que se transformou em pesadelo – o sonho de se implantar uma atividade econômica autossustentável, em moldes civilizados, no coração da Amazônia, e nada mais que isso. Os brasileiros que substituíram os americanos na administração de Belterra já morreram; gerações de nativos – caboclos e caboclas – passaram com seus pés e seus olhos por essas estradas, e em suas margens foram enterradas; alguns conseguiram sair do pesadelo viajando para outras terras, mas suas almas, finda a inglória jornada, retornaram para o lugar onde apesar de sofrerem foram felizes. Depois da partida dos americanos, Belterra cresceu e virou cidade, mas parece cada vez mais deserta e desabitada. É preciso amá-la muito, como o meu pai, para não se decepcionar com ela. É preciso tê-la no coração para enxergá-la com os olhos da alma e perceber-lhe os movimentos ocultos, a paz daqueles olhos que nos espreitam através das paredes e das portas e janelas, sempre abertas mas sempre vazias, ou das margens de suas estradas silenciosas mas movimentadas por seres que se revelam apenas àqueles que, como meu pai, se aproximam com bons propósitos.

Quando papai desceu do trator abandonado, o sol já não conseguia penetrar a densa ramagem das seringueiras. Ao aproximar-me, vi que no fundo de suas retinas havia também densas sombras. Em silêncio nos aproximamos. Não havia o que falar naquele momento, e nem precisava. Mas entendi perfeitamente o que papai estava me dizendo:

“Nada fica de nada, filho. Nada somos. Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos da irrespirável treva que nos pese da úmida terra imposta, cadáveres adiados que procriam. Vive sem horas, filho. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre viver simplesmente. Domina ou cala. Não te percas dando aquilo que não tens. Basta-te o pouco que és. Pois somos nada. Nada.”

Antes de entrarmos no carro e empreendermos o retorno a Santarém, meu pai, num gesto de despedida de um dia que lhe reacendeu velhas paixões e fez sangrar antigas feridas, reaproximou-se do cadáver de trator e, como se acariciasse o dorso de um animal ainda vivo, olhou para a máquina enferrujada, símbolo de malograda promessa de prosperidade, das tantas que já se apresentaram ao povo da Amazônia, e chorou.

Diante do enferrujado trator, simbolo de uma era malograda em Belterra, meu pai chorou. 

FIM




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